O PROBLEMA SERIA MESMO A SELIC?

 BLOG – DIREITO FINANCEIRO EM TELA

AUTOR: Antonio Carlos Costa d'Ávila Carvalho Júnior - Professor de Orçamento Público e Gestão Fiscal - professordavila@hotmail.com

OBSERVAÇÃO: permitida a reprodução, desde que citadas a fonte e o autor.

Entre 2005 e 2012, a União, por meio do Banco Central do Brasil (BCB), adquiriu cerca de US$ 320 bilhões em reservas internacionais. Ao mesmo tempo em que passaram a servir de seguro contra crises externas, as reservas foram o combustível para a máquina de financiamento infinito criada pela Lei 11.803/2008 (conversão da MP 435/2008).

Funcionava assim: quando a taxa de câmbio aumentava, o lucro cambial semestral – meramente contábil – auferido pelo BCB era depositado (em Reais) na Conta Única do Tesouro Nacional (CUTN); quando diminuía, o prejuízo cambial era coberto pelo TN, mas com a emissão de títulos para a carteira da autoridade monetária, e não com a devolução dos Reais transferidos anteriormente. Assim, de um lado, o TN teria vultosos recursos para resgatar (vinculação criada pela MPV 435) a dívida pública mobiliária e, de outro, o BCB teria lastro suficiente para enxugar a liquidez criada no caso de o TN utilizar os Reais para resgatar títulos em mercado.

Em 2009, o Tribunal de Contas da União foi alertado sobre a inconstitucionalidade e a assimetria da máquina de financiamento infinito. A Egrégia Corte, entretanto, não concordou com o entendimento dos auditores, e determinou o arquivamento dos autos e o encaminhamento de cópia do acórdão (1259/2011-TCU-P), do voto e do relatório ao Presidente do BCB e ao Ministro da Fazenda. 

Nos anos de 2008 a 2018, toda essa engrenagem foi responsável pela injeção de mais de R$ 700 bilhões “na veia” da CUTN. Grande parte desse montante serviu de funding para a monetização dos empréstimos feitos pela União às instituições financeiras federais (IFFs). Ao contrário do que sempre foi publicado pelos meios de comunicação, o TN, em vez de captar recursos em mercado para, em seguida, emprestar aos bancos federais, realizava operação de triangulação (para detalhes, ver teor do Acórdão 56/2021-TCU-Plenário) que consistia no seguinte: União e IFF assinavam contrato de mútuo; a União emitia títulos públicos diretamente à IFF; graças aos recursos depositados pelo BCB na CUTN (por meio da máquina de financiamento infinito), a União resgatava os títulos que estavam na carteira da IFF respectiva.

Com tanto dinheiro na CUTN destinado, por lei, ao resgate da dívida pública, a “vontade” de fazer superávit primário (que serve justamente para o pagamento da dívida pública) parece ter perdido força em referido período. Por que impor à sociedade tal sacrifício se o mecanismo de triangulação com o BCB viabilizaria dinheiro em abundância para pagar os credores da União?

A compra de reservas internacionais, a monetização das IFFs com base em recursos oriundos do próprio BCB e o acúmulo de déficits primários (R$ 1,4 trilhão no período 2014 a 2021) foram responsáveis pela elevação brutal da liquidez da economia, representada pelo aumento do estoque de compromissadas em cerca de 20 pontos percentuais do PIB entre dez/2005 (1,7% PIB) e set/2020 (21,6% PIB). De lá pra cá (jan/2023), o montante das compromissadas diminuiu para 11,5% PIB, graças à venda de reservas internacionais, à devolução, pelas IFFs, de parcela dos recursos antes aportados pela União, ao superávit primário obtido no exercício financeiro de 2022, e graças à aprovação da lei (Lei nº 14.185/2021) que criou os depósitos voluntários remunerados no BCB. Em reais, o saldo atual é de R$ 1.069,4 bilhões, com prazo médio de vencimento de apenas 4,9 dias úteis. Considerando-se apenas o montante “refinanciado” no over night, o valor é de R$ 984,8 bilhões. No que tange aos juros apropriados às compromissadas, foram mais de R$ 138 bilhões nos últimos doze meses. 

A lei e a lógica determinam que submeter as operações de cunho monetário a determinado limite ou a prévia autorização legislativa (orçamentária, por exemplo) poderia trazer mais prejuízos do que benefícios, além de comprometer a atuação da autoridade monetária no controle da inflação. Porém, apenas a título de exercício, seria interessante vislumbrar qual seria o montante do orçamento público se, aos fluxos financeiros envolvidos na realização das operações compromissadas, fosse dado o mesmo tratamento que é dispensado às emissões e resgates da dívida pública mobiliária federal.

Considerando que são cerca de 250 dias úteis no ano, as compromissadas, dado o prazo médio, seriam “refinanciadas” 51 vezes em 2023, o que daria um total de R$ 54,8 trilhões em “receitas com emissões” de novas operações e em “despesas com o resgate” das operações vincendas. Sendo assim, o valor do “refinanciamento da dívida pública”, na Lei Orçamentária Anual da União para 2023, passaria de R$ 2,0 trilhões para R$ 56,8 trilhões, elevando o valor total da LOA2023 a R$ 60,1 trilhões, contra os atuais R$ 5,3 trilhões.

No início de 2006, a situação era inversa. O saldo das compromissadas estava em R$ 57,3 bilhões, refinanciadas 4,5 vezes em 250 dias úteis (prazo médio de 51 dias). No ano, seriam R$ 258 bilhões, valor três vezes menor que o do refinanciamento da dívida pública constante da LOA2006: R$ 837,5 bilhões.

Pois bem. Graças à aprovação da Lei nº 13.820/2019, a máquina de financiamento infinito deixou de operar (embora possa voltar a funcionar a qualquer momento, pois o combustível ainda existe). O problema monetário, no entanto, está aí, para quem quiser ver. Quanto ao fiscal, lutamos desesperadamente por mais déficits. Nesse sentido, caberia questionar: o problema seria mesmo a Selic?

FIM


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