PEDALADAS FISCAIS "CLÁSSICAS" e as "FORA DA LEI"

 BLOG – DIREITO FINANCEIRO EM TELA

AUTOR: Antonio Carlos Costa d'Ávila Carvalho Júnior - Professor de Orçamento Público e Gestão Fiscal - professordavila@hotmail.com

OBSERVAÇÃO: permitida a reprodução, desde que citadas a fonte e o autor.

PEDALADAS CLÁSSICAS E AS FORA DA LEI

 Tem sido comum ler artigos e postagens que utilizam a expressão "pedalada fiscal" para fazer referência a toda e qualquer proposta de malabarismo orçamentário. O uso genérico e nada cuidadoso dessa dupla de palavras, ao mesmo tempo em que pouco contribui para o entendimento das mais recentes e criativas operações, muito serve para normalizar os atos que deram azo ao impeachment da ex-presidente da República. Entender a diferença entre as pedaladas "clássicas" e as pedaladas "fora da lei" é fundamental para que não repitamos os erros do passado. Explico.

 O resultado primário considerado oficial para fins de verificação do alcance das metas fiscais é publicado mensalmente pelo Banco Central (BCB), que o apura pela variação do saldo da dívida líquida do setor público (DLSP), descontando-se os juros apropriados pelo regime de competência. Apenas as obrigações e os ativos financeiros registrados junto a entidades do sistema financeiro, ou que tenham se originado de operações por elas sancionadas ou intermediadas, integram o montante da dívida líquida. Referido escopo determina, indiretamente, o regime contábil da apuração: o momento do financiamento.

 Com o propósito de publicar estatísticas que evidenciem situação fiscal melhor do que a real, o governo pratica "pedaladas fiscais", agindo de modo a postergar o registro da despesa primária.

 Chamo de "clássica" a pedalada que alcança seu objetivo fazendo uso das regras estabelecidas pela própria metodologia oficial. Nesse caso, sabedor de que o atraso no pagamento de determinada obrigação não provocará aumento da DLSP, uma vez que, por não atender aos critérios metodológicos, o passivo respectivo não será captado pela estatística fiscal, o governo posterga para outro mês o desembolso dos recursos, adiando o cômputo da variação primária deficitária pelo BCB. São exemplos de pedaladas "clássicas", o parcelamento de precatórios e os atrasos nos repasses de recursos de royalties e do salário-educação a estados e municípios. Estes últimos, identificados em 2014 pelo Tribunal de Contas da União (TCU), no processo das "pedaladas".

 Por outro lado, as pedaladas "fora da lei" são as que, além de descumprirem as regras ditadas pela contabilidade oficial, envolvem a realização de operações que são contrárias, vedadas ou praticadas com inobservância de outras normas. Pouco antes da eleição de 2014, por exemplo, o governo viu-se sem espaço fiscal para honrar o pagamento de várias despesas. Nos casos do seguro desemprego, do abono salarial e do bolsa família, atrasar o pagamento dessas obrigações seria uma pedalada "clássica" (dívidas junto a pessoas físicas não são captadas pela estatística), mas traria elevado ônus político. A solução, nada ortodoxa, adotada foi: utilizar recursos da Caixa Econômica para honrar os dispêndios em nome da União (operação vedada pelo art. 36 da Lei de Responsabilidade Fiscal e passível de enquadramento no art. 359-A do CP); deixar de registrar, na DLSP, a dívida junto à Caixa (contrariando a metodologia); e executar os dispêndios à margem do orçamento (ato tipificado pelo art. 359-D do CP), para que outras despesas de significativa exposição e bônus político, inseridas no processo orçamentário, não precisassem ser contingenciadas.

 Outro tipo de pedalada "fora da lei" identificada em 2014 foi praticada no âmbito do PSI/BNDES/Finame. De acordo com a lei que rege o programa, ao final de cada semestre (período de equalização), a União deveria pagar "equalizações de juros" ao BNDES/Finame, para repor à instituição financeira recursos que esta deixava de receber em razão da concessão de crédito subsidiado. Do ponto de vista das regras da contabilidade oficial, pagar as equalizações – em dia ou não – representaria incorrer em despesa primária, fosse pela redução do saldo da conta única, fosse pelo aumento do estoque de obrigações, respectivamente. Optou-se por não realizar os pagamentos e por não registrar as dívidas na contabilidade oficial. Além disso, o extinto Ministério da Fazenda passou a editar portarias que, ao arrepio da lei, estabeleciam o lapso de 24 meses para pagamento das equalizações e os juros que passariam a ser devidos em razão desse prazo. Funcionavam como verdadeiros contratos unilaterais, por meio dos quais a União obrigava a instituição financeira a financiá-la, em afronta à vedação trazida pelo art. 36 da LRF. Não fosse o bastante, ao final dos dois anos, a dívida (principal e juros) não era paga e nem registrada pelas estatísticas fiscais.

 No que tange ao Programa Minha Casa Minha Vida, atrasar o pagamento de subvenções representaria postergar o registro da despesa primária, mas afetaria a execução da política pública. Então, por lei, o FGTS foi autorizado a honrar os pagamentos da União junto a cada mutuário. Uma das pedaladas "fora da lei", no caso, consistia em não registrar, nas estatísticas, o passivo oriundo da concessão do crédito, omitindo, assim, o cômputo da despesa. Outra pedalada desse tipo residia em omitir no orçamento público que as subvenções (despesas correntes) estavam sendo financiadas mediante endividamento, prática que pode caracterizar inobservância do art. 32, § 1º, V, da LRF. Além disso, embora as subvenções fossem totalmente pagas (com grana do FGTS), apenas as etapas do empenho e da liquidação eram orçamentariamente registradas, inscrevendo-se os montantes respectivos em restos a pagar, para que pudessem ser utilizados como "barriga de aluguel" para o pagamento, sem autorização orçamentária, da dívida junto ao Fundo. Vale ressaltar que executar despesa sem autorização e realizar operação de crédito com inobservância de condição estabelecida em lei são atos passíveis de enquadramento nos crimes tipificados pelos arts. 359-A e 359-D do CP.

 Caro leitor, por evidente, qualquer tipo de pedalada é prejudicial à noção de responsabilidade fiscal. Mas cuidado! Apenas as "fora da lei", como diria o jornalista João Villaverde, podem ser enquadradas como "perigosas pedaladas".

  

FIM

Antonio Carlos Costa d’Ávila Carvalho Júnior[1]



[1] Auditor que coordenou a auditoria que identificou e apresentou à sociedade as pedaladas fiscais que levaram ao impeachment da ex-presidente da República. É Consultor de Orçamento e Fiscalização Financeira na Câmara dos Deputados (desde 2016). Foi Auditor de Controle Externo do Tribunal de Contas da União (2004 a 2016), Analista da Divisão de Finanças Públicas do Departamento Econômico do Banco Central do Brasil (1998 a 2004), sócio da Performance Assessoria e Administração Financeira Ltda (1996 a 1998) e Analista de Sistemas do Banco do Brasil (1983 a 1996); todos os cargos por meio de concurso público. É professor de Orçamento Público, Gestão Fiscal, Administração Financeira e Orçamentária, Lei de Responsabilidade Fiscal, Metodologia "Abaixo da Linha" para Apuração do Resultado Fiscal Primário e Nominal. Coautor do livro Entendendo Resultados Fiscais: Teoria e Prática de Resultados Nominal e Primário (Editora Gestão Pública). Monografia premiada pelo Prêmio do Tesouro Nacional (2011): Coordenação entre as Políticas Fiscal, Monetária e Cambial - a Sistemática de Repasses de Resultados entre o Bacen e o Tesouro Nacional. Especialista em Orçamento Público pelo Instituto Serzedelo Corrêa (ISC) e Centro de Formação da Câmara dos Deputados (CEFOR).

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