PEDALADAS
CLÁSSICAS E AS FORA DA LEI
Tem sido
comum ler artigos e postagens que utilizam a expressão "pedalada
fiscal" para fazer referência a toda e qualquer proposta de malabarismo
orçamentário. O uso genérico e nada cuidadoso dessa dupla de palavras, ao mesmo
tempo em que pouco contribui para o entendimento das mais recentes e criativas
operações, muito serve para normalizar os atos que deram azo ao impeachment da
ex-presidente da República. Entender a diferença entre as pedaladas
"clássicas" e as pedaladas "fora da lei" é fundamental para
que não repitamos os erros do passado. Explico.
O resultado
primário considerado oficial para fins de verificação do alcance das metas
fiscais é publicado mensalmente pelo Banco Central (BCB), que o apura pela variação
do saldo da dívida líquida do setor público (DLSP), descontando-se os juros
apropriados pelo regime de competência. Apenas as obrigações e os ativos
financeiros registrados junto a entidades do sistema financeiro, ou que tenham
se originado de operações por elas sancionadas ou intermediadas, integram o montante
da dívida líquida. Referido escopo determina, indiretamente, o regime contábil
da apuração: o momento do financiamento.
Com o
propósito de publicar estatísticas que evidenciem situação fiscal melhor do que
a real, o governo pratica "pedaladas fiscais", agindo de modo a
postergar o registro da despesa primária.
Chamo de
"clássica" a pedalada que alcança seu objetivo fazendo uso das regras
estabelecidas pela própria metodologia oficial. Nesse caso, sabedor de que o
atraso no pagamento de determinada obrigação não provocará aumento da DLSP, uma
vez que, por não atender aos critérios metodológicos, o passivo respectivo não será
captado pela estatística fiscal, o governo posterga para outro mês o desembolso
dos recursos, adiando o cômputo da variação primária deficitária pelo BCB. São
exemplos de pedaladas "clássicas", o parcelamento de precatórios e os
atrasos nos repasses de recursos de royalties e do salário-educação a
estados e municípios. Estes últimos, identificados em 2014 pelo Tribunal de
Contas da União (TCU), no processo das "pedaladas".
Por outro
lado, as pedaladas "fora da lei" são as que, além de descumprirem as
regras ditadas pela contabilidade oficial, envolvem a realização de operações que
são contrárias, vedadas ou praticadas com inobservância de outras normas. Pouco
antes da eleição de 2014, por exemplo, o governo viu-se sem espaço fiscal para
honrar o pagamento de várias despesas. Nos casos do seguro desemprego, do abono
salarial e do bolsa família, atrasar o pagamento dessas obrigações seria uma
pedalada "clássica" (dívidas junto a pessoas físicas não são captadas
pela estatística), mas traria elevado ônus político. A solução, nada ortodoxa,
adotada foi: utilizar recursos da Caixa Econômica para honrar os dispêndios em
nome da União (operação vedada pelo art. 36 da Lei de Responsabilidade Fiscal e
passível de enquadramento no art. 359-A do CP); deixar de registrar, na DLSP, a
dívida junto à Caixa (contrariando a metodologia); e executar os dispêndios à
margem do orçamento (ato tipificado pelo art. 359-D do CP), para que outras despesas
de significativa exposição e bônus político, inseridas no processo
orçamentário, não precisassem ser contingenciadas.
Outro tipo de
pedalada "fora da lei" identificada em 2014 foi praticada no âmbito
do PSI/BNDES/Finame. De acordo com a lei que rege o programa, ao final de cada
semestre (período de equalização), a União deveria pagar "equalizações de
juros" ao BNDES/Finame, para repor à instituição financeira recursos que esta
deixava de receber em razão da concessão de crédito subsidiado. Do ponto de
vista das regras da contabilidade oficial, pagar as equalizações – em dia ou
não – representaria incorrer em despesa primária, fosse pela redução do saldo
da conta única, fosse pelo aumento do estoque de obrigações, respectivamente.
Optou-se por não realizar os pagamentos e por não registrar as dívidas na
contabilidade oficial. Além disso, o extinto Ministério da Fazenda passou a
editar portarias que, ao arrepio da lei, estabeleciam o lapso de 24 meses para pagamento
das equalizações e os juros que passariam a ser devidos em razão desse prazo. Funcionavam
como verdadeiros contratos unilaterais, por meio dos quais a União obrigava a
instituição financeira a financiá-la, em afronta à vedação trazida pelo art. 36
da LRF. Não fosse o bastante, ao final dos dois anos, a dívida (principal e
juros) não era paga e nem registrada pelas estatísticas fiscais.
No que tange ao Programa Minha Casa Minha Vida, atrasar o pagamento de subvenções representaria
postergar o registro da despesa primária, mas afetaria a execução da política
pública. Então, por lei, o FGTS foi autorizado a honrar os pagamentos da União
junto a cada mutuário. Uma das pedaladas "fora da lei", no caso,
consistia em não registrar, nas estatísticas, o passivo oriundo da concessão do
crédito, omitindo, assim, o cômputo da despesa. Outra pedalada desse tipo
residia em omitir no orçamento público que as subvenções (despesas correntes)
estavam sendo financiadas mediante endividamento, prática que pode caracterizar
inobservância do art. 32, § 1º, V, da LRF. Além disso, embora as subvenções
fossem totalmente pagas (com grana do FGTS), apenas as etapas do empenho e da
liquidação eram orçamentariamente registradas, inscrevendo-se os montantes
respectivos em restos a pagar, para que pudessem ser utilizados como "barriga
de aluguel" para o pagamento, sem autorização orçamentária, da dívida
junto ao Fundo. Vale ressaltar que executar despesa sem autorização e realizar
operação de crédito com inobservância de condição estabelecida em lei são atos
passíveis de enquadramento nos crimes tipificados pelos arts. 359-A e 359-D do
CP.
Caro leitor,
por evidente, qualquer tipo de pedalada é prejudicial à noção de
responsabilidade fiscal. Mas cuidado! Apenas as "fora da lei", como
diria o jornalista João Villaverde, podem ser enquadradas como "perigosas
pedaladas".
FIM
Antonio Carlos Costa d’Ávila Carvalho Júnior
Auditor que coordenou a auditoria que identificou e
apresentou à sociedade as pedaladas fiscais que levaram ao impeachment da
ex-presidente da República. É Consultor de Orçamento e Fiscalização Financeira
na Câmara dos Deputados (desde 2016). Foi Auditor de Controle Externo do
Tribunal de Contas da União (2004 a 2016), Analista da Divisão de Finanças
Públicas do Departamento Econômico do Banco Central do Brasil (1998 a 2004),
sócio da Performance Assessoria e Administração Financeira Ltda (1996 a 1998) e
Analista de Sistemas do Banco do Brasil (1983 a 1996); todos os cargos por meio
de concurso público. É professor de Orçamento Público, Gestão Fiscal, Administração Financeira e Orçamentária, Lei de Responsabilidade Fiscal, Metodologia "Abaixo da Linha" para Apuração do Resultado Fiscal Primário e Nominal. Coautor do livro Entendendo Resultados Fiscais: Teoria e Prática de Resultados Nominal e Primário (Editora Gestão Pública). Monografia premiada pelo Prêmio do Tesouro Nacional (2011): Coordenação entre as Políticas Fiscal, Monetária e Cambial - a Sistemática de Repasses de Resultados entre o Bacen e o Tesouro Nacional. Especialista em Orçamento Público pelo Instituto Serzedelo Corrêa (ISC) e Centro de Formação da Câmara dos Deputados (CEFOR).