BLOG – DIREITO FINANCEIRO EM TELA
Entre
2005 e 2012, a União, por meio do Banco Central do Brasil (BCB), adquiriu cerca
de US$ 320 bilhões em reservas internacionais. Ao mesmo tempo em que passaram a
servir de seguro contra crises externas, as reservas foram o combustível para a
máquina de financiamento infinito criada pela Lei 11.803/2008 (conversão da MP
435/2008).
Funcionava
assim: quando a taxa de câmbio aumentava, o lucro cambial semestral – meramente
contábil – auferido pelo BCB era depositado (em Reais) na Conta Única do
Tesouro Nacional (CUTN); quando diminuía, o prejuízo cambial era coberto pelo TN,
mas com a emissão de títulos para a carteira da autoridade monetária, e não com
a devolução dos Reais transferidos anteriormente. Assim, de um lado, o TN teria
vultosos recursos para resgatar (vinculação criada pela MPV 435) a dívida
pública mobiliária e, de outro, o BCB teria lastro suficiente para enxugar a
liquidez criada no caso de o TN utilizar os Reais para resgatar títulos em
mercado.
Em
2009, o Tribunal de Contas da União foi alertado sobre a inconstitucionalidade
e a assimetria da máquina de financiamento infinito. A Egrégia Corte,
entretanto, não concordou com o entendimento dos auditores, e determinou o arquivamento
dos autos e o encaminhamento de cópia do acórdão (1259/2011-TCU-P), do voto e do
relatório ao Presidente do BCB e ao Ministro da Fazenda.
Nos
anos de 2008 a 2018, toda essa engrenagem foi responsável pela injeção de mais
de R$ 700 bilhões “na veia” da CUTN. Grande parte desse montante serviu de funding para a monetização dos
empréstimos feitos pela União às instituições financeiras federais (IFFs). Ao
contrário do que sempre foi publicado pelos meios de comunicação, o TN, em vez
de captar recursos em mercado para, em seguida, emprestar aos bancos federais,
realizava operação de triangulação (para detalhes, ver teor do Acórdão
56/2021-TCU-Plenário) que consistia no seguinte: União e IFF assinavam contrato
de mútuo; a União emitia títulos públicos diretamente à IFF; graças aos
recursos depositados pelo BCB na CUTN (por meio da máquina de financiamento
infinito), a União resgatava os títulos que estavam na carteira da IFF
respectiva.
Com
tanto dinheiro na CUTN destinado, por lei, ao resgate da dívida pública, a
“vontade” de fazer superávit primário (que serve justamente para o pagamento da
dívida pública) parece ter perdido força em referido período. Por que impor à
sociedade tal sacrifício se o mecanismo de triangulação com o BCB viabilizaria dinheiro
em abundância para pagar os credores da União?
A
compra de reservas internacionais, a monetização das IFFs com base em recursos
oriundos do próprio BCB e o acúmulo de déficits primários (R$ 1,4 trilhão no
período 2014 a 2021) foram responsáveis pela elevação brutal da liquidez da
economia, representada pelo aumento do estoque de compromissadas em cerca de 20
pontos percentuais do PIB entre dez/2005 (1,7% PIB) e set/2020 (21,6% PIB). De
lá pra cá (jan/2023), o montante das compromissadas diminuiu para 11,5% PIB,
graças à venda de reservas internacionais, à devolução, pelas IFFs, de parcela dos
recursos antes aportados pela União, ao superávit primário obtido no
exercício financeiro de 2022, e graças à aprovação da lei (Lei nº 14.185/2021) que criou os depósitos voluntários remunerados no BCB. Em reais, o saldo atual é de R$ 1.069,4 bilhões,
com prazo médio de vencimento de apenas 4,9 dias úteis. Considerando-se apenas
o montante “refinanciado” no over night,
o valor é de R$ 984,8 bilhões. No que tange aos juros apropriados às
compromissadas, foram mais de R$ 138 bilhões nos últimos doze meses.
A
lei e a lógica determinam que submeter as operações de cunho monetário a
determinado limite ou a prévia autorização legislativa (orçamentária, por
exemplo) poderia trazer mais prejuízos do que benefícios, além de comprometer a
atuação da autoridade monetária no controle da inflação. Porém, apenas a título
de exercício, seria interessante vislumbrar qual seria o montante do orçamento
público se, aos fluxos financeiros envolvidos na realização das operações
compromissadas, fosse dado o mesmo tratamento que é dispensado às emissões e
resgates da dívida pública mobiliária federal.
Considerando
que são cerca de 250 dias úteis no ano, as compromissadas, dado o prazo médio, seriam
“refinanciadas” 51 vezes em 2023, o que daria um total de R$ 54,8 trilhões
em “receitas com emissões” de novas operações e em “despesas com o resgate” das
operações vincendas. Sendo assim, o valor do “refinanciamento da dívida
pública”, na Lei Orçamentária Anual da União para 2023, passaria de R$ 2,0
trilhões para R$ 56,8 trilhões, elevando o valor total da LOA2023 a R$ 60,1
trilhões, contra os atuais R$ 5,3 trilhões.
No
início de 2006, a situação era inversa. O saldo das compromissadas estava em R$
57,3 bilhões, refinanciadas 4,5 vezes em 250 dias úteis (prazo médio de 51 dias).
No ano, seriam R$ 258 bilhões, valor três vezes menor que o do refinanciamento da
dívida pública constante da LOA2006: R$ 837,5 bilhões.
Pois bem. Graças à aprovação da Lei nº 13.820/2019, a máquina de financiamento infinito deixou de operar (embora possa voltar a funcionar a qualquer momento, pois o combustível ainda existe). O problema monetário, no entanto, está aí, para quem quiser ver. Quanto ao fiscal, lutamos desesperadamente por mais déficits. Nesse sentido, caberia questionar: o problema seria mesmo a Selic?
FIM