AUTOR: Antonio
Carlos Costa d'Ávila Carvalho Júnior - Professor de Orçamento Público e Gestão Fiscal -
professordavila@hotmail.com
OBSERVAÇÃO: permitida a reprodução, desde que citados a fonte e o autor.
O presente texto tem
por objetivo evidenciar que a chamada “operação de equalização cambial”,
trazida ao mundo jurídico pela Medida Provisória nº 435/2008, representa
sistemática de financiamento do Tesouro Nacional (TN) pelo Banco Central do
Brasil (BCB), a qual, de 2009 a 2017, gerou mais de R$ 77 bilhões em
transferências de Reais para a Conta Única da União.
Nessa esteira, após
apresentar inconsistências contidas em Parecer da Consultoria Jurídica do
Tribunal de Contas da União utilizado para embasar o Voto do Ministro-Relator
no âmbito do TC 022.649/2009-4, este texto aproveita a oportunidade para
sugerir à Egrégia Corte de Contas que reveja as conclusões exaradas por
intermédio do Acórdão 1259/2011-TCU-Plenário, que informou não haver
qualquer incompatibilidade entre a “operação de equalização cambial” e o texto
constitucional.
O RESULTADO PATRIMONIAL DO BANCO CENTRAL DO BRASIL
A tabela e o gráfico
a seguir mostram o resultado patrimonial semestral do BCB, desde o segundo
semestre do ano 2000.
Tabela 1 – Banco Central – Resultado Patrimonial Semestral – em R$ mil
Semestre
|
Resultado
|
Semestre
|
Resultado
|
Semestre
|
Resultado
|
dez/00
|
1.308.473
|
dez/06
|
-643.092
|
dez/12
|
12.296.483
|
jun/01
|
-4.084.749
|
jun/07
|
-30.304.910
|
jun/13
|
17.688.071
|
dez/01
|
7.158.161
|
dez/07
|
-17.209.229
|
dez/13
|
14.267.811
|
jun/02
|
-10.910.085
|
jun/08
|
3.172.740
|
jun/14
|
5.271.503
|
dez/02
|
-6.283.614
|
dez/08
|
10.172.653
|
dez/14
|
25.655.376
|
jun/03
|
24.181.794
|
jun/09
|
-941.601
|
jun/15
|
35.184.659
|
dez/03
|
7.136.558
|
dez/09
|
6.550.645
|
dez/15
|
41.521.539
|
jun/04
|
2.795.700
|
jun/10
|
10.803.195
|
jun/16
|
-17.308.089
|
dez/04
|
-258.271
|
dez/10
|
4.926.775
|
dez/16
|
7.780.387
|
jun/05
|
-11.616.553
|
jun/11
|
12.230.706
|
jun/17
|
11.271.662
|
dez/05
|
1.161.877
|
dez/11
|
11.240.704
|
dez/17
|
14.709.838
|
jun/06
|
-12.523.956
|
jun/12
|
12.318.246
|
-
|
-
|
Fonte:
Banco Central do Brasil – Demonstrações Contábeis
(+) lucro
/ (-) prejuízo.
Elaboração própria
Gráfico 1 – Banco Central –
Resultado Patrimonial Semestral – em R$ milhões
![]() |
Fonte: Banco Central do Brasil - Demonstrações Contábeis
(+) Lucro / (-) Prejuízo
Elaboração própria.
|
Como é possível
observar, os dados estão divididos em duas grandes porções. A primeira vai até
o 2º semestre de 2007 e é caracterizada pela grande oscilação do resultado
patrimonial do BCB, com resultados positivos (lucro) e negativos (prejuízo). A
segunda parte, por sua vez, com início no 1º semestre de 2008, tem como
característica a prevalência de resultados patrimoniais positivos (lucro).
Que fator explicaria
tal diferença de comportamento? Por que é o ano de 2008 que marca a separação
entre tais porções? O que as reservas internacionais têm a ver com os dados do
gráfico acima?
Vou tentar explicar.
O resultado
patrimonial do BCB – ou seja, o reconhecimento de suas receitas e despesas –
sempre foi apurado por intermédio do regime
de competência, como determina a Lei 4.595/1964, in verbis:
“Art. 8º [...]
Parágrafo único. Os
resultados obtidos pelo Bacen, consideradas as receitas e despesas de todas
as suas operações, serão, a partir de 1º de janeiro de 1988, apurados pelo regime de competência e
transferidos para o Tesouro Nacional, após compensados eventuais prejuízos de
exercícios anteriores.”
(Grifou-se)
Por ser o
depositário das reservas internacionais, conforme determina o art. 10 da Lei
4.595/1964, a apuração do resultado patrimonial do BCB incluía em seu cômputo
os efeitos decorrentes da apropriação das variações (aumento e/ou redução) dos
estoques, em Reais, dessas reservas, causadas por flutuações na taxa de câmbio.
Verbis:
“Art. 10. Compete privativamente ao Banco Central da República do Brasil:
[...]
VIII - Ser depositário
das reservas oficiais de ouro e moeda estrangeira e de Direitos Especiais de
Saque e fazer com estas últimas todas e quaisquer operações previstas no
Convênio Constitutivo do Fundo Monetário Internacional;” (Grifou-se)
Em razão da elevação
substancial do saldo das reservas internacionais ocorrida a partir do ano de
2007, tais variações estavam se tornando cada vez mais expressivas. A tabela e
o gráfico a seguir mostram a evolução (semestral) dos saldos das reservas a partir
de dezembro/2000.
Tabela 2 – Reservas Internacionais – Saldos – em US$ milhões
Semestre
|
Reservas
|
Semestre
|
Reservas
|
Semestre
|
Reservas
|
dez/00
|
33.011
|
dez/06
|
85.839
|
dez/12
|
373.147
|
jun/01
|
37.318
|
jun/07
|
147.101
|
jun/13
|
369.402
|
dez/01
|
35.866
|
dez/07
|
180.334
|
dez/13
|
358.808
|
jun/02
|
41.999
|
jun/08
|
200.827
|
jun/14
|
373.516
|
dez/02
|
37.823
|
dez/08
|
193.783
|
dez/14
|
363.551
|
jun/03
|
47.956
|
jun/09
|
201.467
|
jun/15
|
368.668
|
dez/03
|
49.296
|
dez/09
|
238.520
|
dez/15
|
356.464
|
jun/04
|
49.805
|
jun/10
|
253.114
|
jun/16
|
364.152
|
dez/04
|
52.935
|
dez/10
|
288.575
|
dez/16
|
365.016
|
jun/05
|
59.885
|
jun/11
|
335.775
|
jun/17
|
377.175
|
dez/05
|
53.799
|
dez/11
|
352.012
|
dez/17
|
373.972
|
jun/06
|
62.670
|
jun/12
|
373.910
|
mar/18
|
379.577
|
Fonte: Banco Central do Brasil – Séries Temporais
Elaboração própria
Elaboração própria
Gráfico 2 – Reservas
Internacionais – Saldos – em US$ milhões
![]() |
Fonte: Banco Central do Brasil
Elaboração própria.
|
Por evidente, quanto
maior o saldo das reservas internacionais, maior é o potencial de volatilidade
do resultado patrimonial do BCB. Referido entendimento foi manifestado,
inclusive, no texto da Exposição de Motivos que deu base à edição da MPV
435/2008, in verbis:
“8. Conquanto atenda ao desiderato de tornar mais
sólida a posição externa do País, a política de reforço das reservas cambiais,
somada aos impactos decorrentes das intervenções da autoridade monetária no
mercado interno mediante o emprego de derivativos cambiais, tem implicado volatilidade no resultado do
Banco Central do Brasil. Isso ocorre porque, em consonância com as práticas
contábeis nacionais e internacionais, a lei determina que as demonstrações do
Banco Central do Brasil sigam o regime de competência para o reconhecimento de
receitas e despesas. Semelhante procedimento conduz a que a apuração, em moeda nacional, do estoque de reservas cambiais e
derivativos cambiais detidos pelo Banco Central do Brasil sofra os efeitos das
oscilações na taxa de câmbio, a despeito da possibilidade de reversão, em
data futura, de receitas e despesas com variações cambiais.
9. O crescente descasamento entre ativos e
passivos cambiais tem tornado o
resultado do Banco Central do Brasil excessivamente volátil, o que
prejudica a análise do resultado das operações de política monetária, função
principal da autarquia.”
(Grifou-se)
Vale dizer, por oportuno,
que é essa volatilidade que explica as variações (lucros e prejuízos)
apresentadas pela primeira parte do Gráfico 1.
Assim, em face da
expressiva elevação do estoque das reservas internacionais, tais oscilações se
tornariam cada vez maiores, dando azo a que se propusesse a instituição da
chamada “operação de equalização cambial”, como mostra o item 10 da Exposição
de Motivos da MPV 435/2008, in verbis:
“10. Diante do exposto, propomos adotar, conjuntamente com a cessão de títulos do Tesouro
Nacional ao Banco Central do Brasil, acima referida, um mecanismo destinado a reduzir a volatilidade do resultado do Banco
Central do Brasil, mediante a transferência, para a União, do resultado
financeiro das operações realizadas pelo Banco Central do Brasil, desde 2 de janeiro de 2008, com
reservas cambiais e, no mercado interno, com derivativos cambiais. Deve-se
salientar que tal procedimento contábil não altera o fluxo financeiro entre os
dois entes, de modo que a medida não acarreta custos adicionais para o Tesouro.” (Grifou-se)
O RESULTADO DO BCB ANTES DA “OPERAÇÃO DE EQUALIZAÇÃO
CAMBIAL”
A “operação de
equalização cambial” alterou a sistemática de apuração do resultado do Banco
Central do Brasil, excluindo de seu cômputo os efeitos decorrentes das
variações na taxa de câmbio.
Mas como funciona
tal exclusão? Da forma como foi implementada, teria havido a criação de uma
sistemática de financiamento do TN pelo BCB? Para responder a essas e outras
perguntas será necessário analisar como era efetuada a apuração do resultado do
Banco Central do Brasil antes da edição da MPV 435/2008.
Resultado Patrimonial do BCB: Operações Cambiais e Demais
Operações
Antes da “operação
de equalização cambial”, o resultado patrimonial do BCB era composto,
basicamente, por dois grandes grupos de operações: “cambiais” e “demais
operações”.
RESULTADO TOTAL = (Resultado
Cambial) + (Resultado Demais Operações)
O resultado cambial
e o das demais operações podiam ser assim escritos:
RESULTADO CAMBIAL = (Receitas
Cambiais) – (Despesas Cambiais)
RESULTADO DEMAIS OP = (Receitas
Demais Operações) – (Despesas Demais Operações)
A Demonstração do
Resultado do Exercício (DRE) poderia ser construída, então, da seguinte forma:
DEMONSTRAÇÃO DO RESULTADO DO
EXERCÍCIO - DRE
Operações Cambiais (+)
|
RECEITAS
|
R$
|
|
Operações Cambiais (-)
|
DESPESAS
|
R$
|
|
Operações
Cambiais Resultado (=)
|
R$
|
||
Demais Operações (+)
|
RECEITAS
|
R$
|
|
Demais Operações (-)
|
DESPESAS
|
R$
|
|
Demais
Operações Resultado (=)
|
R$
|
||
Resultado
Total (=)
|
Lucro
(L) / Prejuízo (P)
|
R$
|
Feita a apuração, as
possíveis hipóteses para os resultado seriam as seguintes:
(i) prejuízo (P) em
operações cambiais e em demais operações;
(ii) lucro (L) em
operações cambiais e em demais operações;
(iii) lucro (L) em
operações cambiais e prejuízo (P) em demais operações; e
(iv) prejuízo (P) em
operações cambiais e lucro (L) em demais operações.
No caso das duas
primeiras hipóteses (i) e (ii), os valores individuais relativos são
irrelevantes para fins de apuração do resultado total, posto que ambos apontam
para a mesma direção: lucro (L) ou prejuízo (P).
Feita tal
observação, é possível construir uma tabela onde se evidencie qual seria o
resultado total a partir das diversas possibilidades para os resultados
“cambial” e “demais operações”.
Tabela 3 – Operações Cambiais versus Demais Operações – Resultados
Possíveis
Tipo de Resultado
|
1
|
2
|
3
|
4
|
5
|
6
|
7
|
8
|
Resultado Operações
Cambiais
|
P
|
L
|
L
|
L
|
L
|
P
|
P
|
P
|
<,= ou >
|
<,= ou >
|
<
|
=
|
>
|
<
|
=
|
>
|
|
Resultado Demais
Operações
|
P
|
L
|
P
|
P
|
P
|
L
|
L
|
L
|
Resultado Total
|
P
|
L
|
P
|
0
|
L
|
L
|
0
|
P
|
L – Lucro / P – Prejuízo.
Elaboração própria
Caso o resultado
patrimonial total apurado pelo BCB fosse um “lucro” (situações 2, 5 ou 6),
partia-se para a constituição de reservas de resultado, como determina a Lei de
Responsabilidade Fiscal (LRF) em seu art. 7º, caput, in verbis:
“Art. 7º O resultado do Banco Central do Brasil, apurado após a constituição ou reversão
de reservas, constitui receita do
Tesouro Nacional, e será transferido até o décimo dia útil subseqüente à
aprovação dos balanços semestrais.” (Grifou-se)
Até o advento da
“operação de equalização cambial”, o dispositivo que estabelecia a forma de
constituição de reservas pelo BCB estava positivado pelo art. 2º, § 3º, da
Medida Provisória nº 2.179-36, de 24 de agosto de 2001, in verbis:
“Art. 2º O resultado apurado no balanço
semestral do Banco Central do Brasil após computadas eventuais constituições ou
reversões de reservas será considerado:
§ 3º A constituição de reservas de que trata
o caput não poderá ser
superior a vinte e cinco por cento do resultado apurado no balanço do Banco
Central do Brasil.”
(Grifou-se)
Como visto, a
constituição de reservas estava limitada a 25% (vinte e cinco por cento) do
resultado patrimonial total, o qual englobava tanto as “demais operações”
quanto as “operações cambiais”.
RESERVAS DE RESULTADO <=
(RESULTADO TOTAL x 0,25)
Definido o montante
da reserva a ser (ou não) constituída, apurava-se o valor a ser transferido
para a União, o qual passava a ser registrado como uma obrigação no passivo do
BCB.
RESULTADO A TRANSFERIR = (RESULTADO TOTAL) - (RESERVA CONSTITUÍDA)
OBRIGAÇÃO junto ao TN = RESULTADO A TRANSFERIR
OBRIGAÇÃO junto ao TN = RESULTADO A TRANSFERIR
Até o prazo
estabelecido pelo art. 2º, inciso I, da MPV 2.179-36/2001, o BCB honrava sua
obrigação, transferindo Reais diretamente à Conta Única do TN. Verbis:
“Art. 2º O resultado apurado no balanço semestral
do Banco Central do Brasil após computadas eventuais constituições ou reversões
de reservas será considerado:
I - se
positivo, obrigação do Banco Central do Brasil para com a União, devendo
ser objeto de pagamento até o décimo dia útil subseqüente ao da aprovação do
balanço pelo Conselho Monetário Nacional;” (Grifou-se)
Perceba-se que, no
regime de apuração de resultado que ocorria até o advento da MPV 435/2008, a
obrigação de transferir Reais para a Conta Única somente era registrada APÓS a
apuração do resultado patrimonial do semestre e APÓS a definição do montante da
reserva de resultado.
Resultado do BCB – Sistemática Anterior à MPV435/2008 -
Exemplo
Para ilustrar o que
foi dito até o presente momento, vamos imaginar que, ao longo de um semestre, o
BCB tenha realizado as seguintes operações:
(i) receitas
cambiais = 3.500;
(ii) despesas
cambiais = 3.200;
(iii) demais
receitas = 2.000;
(iv) demais despesas
= 1.500.
O resultado
patrimonial semestral seria evidenciado pela DRE, como segue.
DEMONSTRAÇÃO DO RESULTADO DO
EXERCÍCIO - DRE
Operações Cambiais (+)
|
RECEITAS
|
3.500
|
|
Operações Cambiais (-)
|
DESPESAS
|
3.200
|
|
Operações
Cambiais Resultado (=)
|
Lucro
de
|
300
|
|
Demais Operações (+)
|
RECEITAS
|
2.000
|
|
Demais Operações (-)
|
DESPESAS
|
1.500
|
|
Demais
Operações Resultado (=)
|
Lucro
de
|
500
|
|
Resultado
Total
|
Lucro
de
|
800
|
O montante máximo de
reservas que poderia ser constituído seria igual a 200 unidades monetárias,
resultado da aplicação do percentual de 25% sobre o resultado patrimonial de
800.
RESERVAS DE RESULTADO <=
(RESULTADO TOTAL x 0,25)
RESERVAS DE
RESULTADO <= (800 x 0,25)
RESERVAS DE
RESULTADO <= 200
Entretanto,
decidiu-se por não constituir qualquer reserva de resultado, efetuando-se o
registro de obrigação junto à União, no valor total do resultado patrimonial,
como segue.
CONTINUA NA PARTE 2
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