ORÇAMENTO PÚBLICO - O REFINANCIAMENTO DA DÍVIDA E O GRÁFICO DE PIZZA



BLOG – DIREITO FINANCEIRO EM TELA
AUTOR: Antonio Carlos Costa d'Ávila Carvalho Júnior - Professor de Orçamento Público e Gestão Fiscal - professordavila@hotmail.com
OBSERVAÇÃO: permitida a reprodução, desde que citadas a fonte e o autor.

O presente texto (baixar AQUI) tem por objetivo mostrar que o comportamento fiscal (responsável ou irresponsável) de uma entidade é o fator que determina a maior ou menor participação, no montante total do orçamento da entidade, dos recursos destinados ao pagamento de dívidas.
Isso porque, como demonstrado a seguir, nos casos em que a entidade apresenta resultado primário neutro ou deficitário, a não geração de sobras de caixa determina que as dívidas antigas somente possam ser honradas por intermédio da contratação de novas dívidas, mecanismo que se convencionou chamar de “refinanciamento” ou “rolagem” da dívida.
Para tanto, este texto mostra orçamentos domésticos hipotéticos de duas famílias (A e B) ao longo dos exercícios financeiros de 2020 a 2025.
Ambas apresentam o mesmo montante anual de:
a) receitas (salários): 100.000
b) despesas (diversas): 100.000
Ambas decidem contratar, em 2020, financiamento para aquisição de apartamento, nas seguintes condições:
a) valor do financiamento: R$ 100.000
b) taxa de juros: 0% (zero por cento)
c) valor do imóvel: R$ 100.000
d) amortização: 4 parcelas de R$ 25.000, anuais.


ANÁLISE DA FAMÍLIA A
Como mostra a Tabela 01 a seguir, em 2020, a Família A apresenta orçamento total de 200.000. No que tange às receitas, referido montante é representado pelas receitas com “salário” e com financiamento imobiliário. Quanto às despesas, o montante de 200.000 está distribuído entre despesas diversas (saúde, educação, segurança, transporte etc) e a despesa com a aquisição do imóvel (apartamento).
Tabela 01 – Família A – Orçamentos anuais (2020 a 2025) – em R$

2020
2021
2022
2023
2024
2025
RECEITAS TOTAIS
200.000
100.000
100.000
100.000
100.000
100.000
  Salário
100.000
100.000
100.000
100.000
100.000
100.000
  Financiamento 1
100.000
0
0
0
0
0
DESPESAS TOTAIS
200.000
100.000
100.000
100.000
100.000
100.000
  Educação
25.000
22.000
22.000
22.000
22.000
25.000
  Saúde
25.000
22.000
22.000
22.000
22.000
25.000
  Segurança
10.000
8.000
8.000
8.000
8.000
10.000
  Transporte
5.000
3.000
3.000
3.000
3.000
5.000
  Administrativas
15.000
10.000
10.000
10.000
10.000
15.000
  Outras
20.000
10.000
10.000
10.000
10.000
20.000
  Apartamento
100.000
0
0
0
0
0
  Resgate Dívida 1
0
25.000
25.000
25.000
25.000
0
Elaboração própria
Sabedora de que terá que honrar o compromisso assumido por intermédio da contratação do financiamento imobiliário, a Família A decidiu reduzir o montante de suas despesas diversas ao longo dos exercícios financeiros de 2021 a 2024, passando a destinar referida sobra de receitas (superávit primário) ao pagamento da dívida contraída em 2020, como mostram as Tabelas 01 e 02. 

Tabela 02 – Família A – Indicadores – Orçamentos anuais (2020 a 2025) – em R$

2020
2021
2022
2023
2024
2025
Superávit primário (R$)
(100.000)
25.000
25.000
25.000
25.000
0
Resgate de Dívida (R$)
0
25.000
25.000
25.000
25.000
0
Total do Orçamento (R$)
200.000
100.000
100.000
100.000
100.000
100.000
Resgate /Total Orçamento (%)
0%
25%
25%
25%
25%
0%
Estoque Dívidas (R$)
100.000
75.000
50.000
25.000
0
0
Elaboração própria

De forma responsável, portanto, a escolha feita pela Família A – de gerar superávits primários – abriu espaço em seu orçamento doméstico para que, entre 2021 e 2024, fosse efetuado o resgate (devolução dos recursos ao credor) de todo o financiamento imobiliário, permitindo que, a partir de 2025, voltasse a destinar todo seu salário anual para o financiamento de despesas diversas.

 Elaboração própria

Os gráficos acima também podem ser apresentados com informações “abertas” por itens que compõem as despesas diversas. Percebe-se que, para disponibilizar recursos para o pagamento das parcelas anuais da dívida contraída em 2020, foi preciso reduzir o montante de despesas com educação, saúde, segurança etc, as quais tiveram seu valor recomposto em 2025, assim que o endividamento foi inteiramente amortizado.

Elaboração própria


ANÁLISE DA FAMÍLIA B
A Tabela 03, a seguir, apresenta os orçamentos da Família B relativos aos exercícios financeiros de 2020 a 2025. Para 2020, o orçamento é idêntico ao da Família A: receitas no montante de 200.000, compostas por salários (100.000) e financiamento imobiliário (100.000); e despesas também no valor de 200.000, distribuídas entre as despesas diversas (100.000) e aquisição de apartamento (100.000). Para 2021 a 2024, no entanto, a Família B fez a escolha de não gerar superávits primários (nem pelo aumento de receitas e nem pela redução no montante das despesas diversas).
  Tabela 03 – Família B – Orçamentos anuais (2020 a 2025) – em R$

2020
2021
2022
2023
2024
2025
RECEITAS TOTAIS
200.000
125.000
150.000
175.000
200.000
200.000
  Salário
100.000
100.000
100.000
100.000
100.000
100.000
  Financiamento 1
100.000
0
0
0
0
0
  Financiamento 2
0
25.000
0
0
0
0
  Financiamento 3
0
0
50.000
0
0
0
  Financiamento 4
0
0
0
75.000
0
0
  Financiamento 5
0
0
0
0
100.000
0
  Financiamento 6
0
0
0
0
0
100.000
DESPESAS TOTAIS
200.000
125.000
150.000
175.000
200.000
200.000
  Educação
25.000
25.000
25.000
25.000
25.000
25.000
  Saúde
25.000
25.000
25.000
25.000
25.000
25.000
  Segurança
10.000
10.000
10.000
10.000
10.000
10.000
  Transporte
5.000
5.000
5.000
5.000
5.000
5.000
  Administrativas
15.000
15.000
15.000
15.000
15.000
15.000
  Outras
20.000
20.000
20.000
20.000
20.000
20.000
  Apartamento
100.000
0
0
0
0
0
  Resgate Dívida 1
0
25.000
25.000
25.000
25.000
0
  Resgate Dívida 2
0
0
25.000
0
0
0
  Resgate Dívida 3
0
0
0
50.000
0
0
  Resgate Dívida 4
0
0
0
0
75.000
0
  Resgate Dívida 5
0
0
0
0
0
100.000
Elaboração própria

A escolha feita pela Família B teve implicações sobre a evolução do estoque de suas dívidas e sobre o montante do orçamento total dedicado ao pagamento de obrigações, como mostra a Tabela 04 a seguir.
 Tabela 04 – Família B – Indicadores – Orçamentos anuais (2020 a 2025) – em R$

2020
2021
2022
2023
2024
2025
Superávit primário (R$)
(100.000)
0
0
0
0
0
Emissão de Dívida (R$)
100.000
25.000
50.000
75.000
100.000
100.000
Resgate de Dívida (R$)
0
25.000
50.000
75.000
100.000
100.000
Total do Orçamento (R$)
200.000
125.000
150.000
175.000
200.000
200.000
Resgate /Total do Orçamento (%)
0%
20%
33%
43%
50%
50%
Estoque Dívidas (R$)
100.000
100.000
100.000
100.000
100.000
100.000
Elaboração própria
Como se pode ver, a ausência de resultados primários superavitários (entre 2021 a 2024) fez com que não fossem gerados recursos para o pagamento das parcelas anuais (25.000) relativas ao financiamento imobiliário contratado em 2020, o que forçou, a partir de 2021, a contratação de novas operações de crédito para o pagamento de tais obrigações, bem como para o pagamento posterior dessas mesmas dívidas. Como resultado, o estoque total de dívida não diminuiu e a participação da despesa com pagamento da dívida em relação ao total do orçamento aumentou até o patamar de 50%.
Nessa esteira, vale observar, com maior detalhe, o mecanismo adotado pela Família B para o pagamento de suas obrigações, como segue:
·  em 2021, foi contratada nova dívida (financiamento 2, no valor de 25.000) para o pagamento da primeira parcela da “dívida 1” (também no valor de 25.000).
·  em 2022, outra dívida foi contraída (financiamento 3, no valor de 50.000) para o pagamento de duas obrigações: 25.000 referentes à segunda parcela da “dívida 1” e 25.000 para pagamento da “dívida 2”, a qual também não pôde ser paga pela ausência da geração de recursos próprios em 2022.
·  em 2023, mais uma dívida foi contraída (financiamento 4, no valor de 75.000) para o pagamento de 25.000 referentes à terceira parcela da “dívida 1” e para pagamento dos 50.000 referentes à “dívida 3”, contratada no ano de 2022 por intermédio do “financiamento 3”.
·  em 2024 foi contratada uma nova dívida (financiamento 5, no valor de 100.000), para honrar o pagamento da quarta e última parcela referente à “dívida 1” (financiamento para aquisição do apartamento em 2020) e mais 75.000 para honrar o pagamento da “dívida 4” contratada em 2023.
·  por fim, em 2025, foi realizada nova operação de crédito (financiamento 6) no valor de 100.000, cujo montante foi integralmente destinado ao pagamento da “dívida 5” contraída no ano anterior.
Referida dinâmica, na qual são emitidas novas dívidas para honrar o pagamento de dívidas vincendas, recebe o nome de “refinanciamento da dívida”. Curioso observar, por oportuno, a definição de “refinanciamento da dívida mobiliária” trazida pelo art. 29, inciso V, da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), in verbis:
Art. 29. Para os efeitos desta Lei Complementar, são adotadas as seguintes definições:
(...)
V - refinanciamento da dívida mobiliária: emissão de títulos para pagamento do principal acrescido da atualização monetária. (Grifou-se)
Também é interessante observar que a LRF determina que o refinanciamento da dívida deve constar do orçamento, de modo destacado. Verbis:
Art. 5º O projeto de lei orçamentária anual, elaborado de forma compatível com o plano plurianual, com a lei de diretrizes orçamentárias e com as normas desta Lei Complementar:
(...)
§ 2º O refinanciamento da dívida pública constará separadamente na lei orçamentária e nas de crédito adicional. (Grifou-se)
Aplicando ao orçamento da Família B a determinação do art. 5º, § 2º, da LRF, temos:
Tabela 05 – Família B – Refinanciamento da Dívida e Demais (2020 a 2025) – em R$

2020
2021
2022
2023
2024
2025
ORÇAMENTO DAS DEMAIS R e D (A)
200.000
100.000
100.000
100.000
100.000
100.000
 Receitas
200.000
100.000
100.000
100.000
100.000
100.000
  Salário
100.000
100.000
100.000
100.000
100.000
100.000
  Financiamento Apto
100.000
0
0
0
0
0
 Despesas
200.000
100.000
100.000
100.000
100.000
100.000
  Diversas
100.000
100.000
100.000
100.000
100.000
100.000
  Apartamento Aquisição
100.000
0
0
0
0
0
REFINANCIAMENTO (B)
0
25.000
50.000
75.000
100.000
100.000
  Receitas
0
25.000
50.000
75.000
100.000
100.000
  Emissão de nova dívida
0
25.000
50.000
75.000
100.000
100.000
  Despesas
0
25.000
50.000
75.000
100.000
100.000
  Resgate de dívida antiga
0
25.000
50.000
75.000
100.000
100.000
ORÇAMENTO TOTAL (C = A + B)
200.000
125.000
150.000
175.000
200.000
200.000
 Receitas
200.000
125.000
150.000
175.000
200.000
200.000
 Despesas
200.000
125.000
150.000
175.000
200.000
200.000
Elaboração própria
Apresentadas tais informações, é possível visualizá-las por intermédio de gráficos. Os próximos 6 (seis) gráficos mostram como os montantes relativos ao pagamento de dívidas vão se tornando, para a Família B, uma parcela cada vez maior do orçamento total.

Elaboração própria
Elaboração própria
Vale observar que o aumento da participação da despesa com pagamento da dívida em relação ao orçamento total não se deve à redução do montante das demais despesas do orçamento. Como fartamente observado neste texto, a Família B tomou a decisão de não reduzir o montante das despesas “diversas”, as quais continuaram a ser de 100.000, como mostram os 6 (seis) gráficos abaixo).
Elaboração própria
Elaboração própria
Elaboração própria

A comparação entre os Gráficos 13 e 18
Algumas pessoas utilizam as situações evidenciadas pelos Gráficos 13 e 18 para sustentar a seguinte tese: o sistema da dívida existente atualmente (Gráfico 18) é perverso, pois todo o endividamento contratado ao longo do exercício serve para o pagamento da própria dívida e não para a realização de investimentos, como mostra o gráfico 13.
Sim, isso é verdade!
No entanto, é preciso reconhecer que tal situação (gráfico 18) somente passou a ocorrer por escolha única e exclusiva da própria Família B, que decidiu não gerar sobras de caixa (superávits primários) para o pagamento da dívida inicial. Tal opção – feita de maneira autônoma, frise-se! – gerou, por conseguinte, a necessidade de se efetuar a contratação de novas, sucessivas e crescentes operações de crédito, para refinanciar as parcelas do financiamento imobiliário. Em outras palavras: a situação vivenciada pela Família B não tem qualquer relação com atos comissivos ou omissivos do credor, mas de suas próprias escolhas.
Forçoso concluir, assim, no sentido de que referida situação – na qual o pagamento da dívida ocupa grande parcela do orçamento total – somente deixará de existir se, e quando, o devedor (Família B) entender, definitivamente, que é preciso efetuar esforço fiscal (superávits primários) para devolver os recursos que lhe foram emprestados pelo credor, assim como o fez a Família A.

CONCLUSÕES
O presente texto mostrou os orçamentos de duas famílias (A e B) que apresentavam as mesmas estruturas de receitas (salários) e de despesas (diversas).
Mostrou também que ambas contrataram fonte de financiamento sob as mesmas condições de montante, prazo de pagamento e de juros (0%) e aplicaram os respectivos recursos na aquisição de imóvel de mesmo valor (100.000).
Ainda assim, o texto mostrou que, ao final de 2025, as Famílias A e B apresentaram situações fiscais completamente distintas: a Família A não possuía mais qualquer estoque de dívida e não possuía qualquer despesa em seu orçamento dedicado ao pagamento de dívidas e/ou encargos, enquanto a Família B apresentava saldo de dívida igual ao financiamento obtido no exercício de 2020 e dedicava 50% de seu orçamento total ao pagamento de dívidas.
O texto deixou evidenciado que as diferenças entre as situações fiscais tiveram como fator condicionante os distintos comportamentos fiscais apresentados pelas Famílias A e B ao longo dos exercícios de 2021 a 2024, a saber:
·         a Família A reduziu suas despesas diversas, para gerar sobras de caixa (superávit primário) para o pagamento das parcelas anuais referentes ao financiamento imobiliário; e
·         a Família B não gerou resultados primários superavitários, passando a honrar seus compromissos (pagamento das parcelas da dívida) por intermédio da contratação de novas dívidas.
Em face do exposto, é possível concluir que:
a) a contratação de operações de crédito demanda a obtenção de superávits primários em exercícios subsequentes, para o pagamento das respectivas parcelas de amortização da dívida contraída;
b) a redução da participação do montante dedicado ao pagamento de dívidas (principal e juros) no total do orçamento depende da obtenção de superávits primários, o que exige comportamento fiscal responsável por parte do devedor; e
c) a situação fiscal apresentada por determinada entidade tem mais a ver com seu próprio comportamento fiscal do que com as condições (juros, encargos, montante, prazos etc) associadas à dívida contratada.
FIM











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