PRECATÓRIOS - ORÇAMENTO PÚBLICO versus Art. 100, §§ 11 e 21, da CF/1988

 BLOG – DIREITO FINANCEIRO EM TELA

AUTORES: Antonio Carlos Costa d'Ávila Carvalho Júnior - Professor de Orçamento Público e Gestão Fiscal - professordavila@hotmail.com, em colaboração com equipe de consultores da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. 


OBSERVAÇÃO: permitida a reprodução, desde que citadas a fonte e o autor.


O PLDO 2025, por meio do art. 6º, § 1º, inciso V, transcrito a seguir, almeja estabelecer que as operações listadas pelos §§ 11 e 21 do art. 100 da Constituição não sejam incluídas nos orçamentos fiscal e da seguridade social. Referido anseio também se fez presente no texto do PLDO 2024, mas não foi aprovado pelo Congresso Nacional, não vindo a integrar o texto da LDO 2024.

Art. 6º Os Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social compreenderão o conjunto das receitas públicas e das despesas dos Poderes, do Ministério Público da União e da Defensoria Pública da União, de seus fundos, órgãos, autarquias, inclusive especiais, e fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, das empresas públicas, sociedades de economia mista e demais entidades em que a União, direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto e que dela recebam recursos do Tesouro Nacional, devendo a correspondente execução orçamentária e financeira, da receita e da despesa, ser registrada na modalidade total no Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal - Siafi. 

§ 1º Ressalvada a hipótese prevista no § 3º, ficam excluídos do disposto no caput: 

[...] 

V - os atos decorrentes das compensações realizadas a partir das hipóteses previstas nos § 11 e § 21 do art. 100 da Constituição. (Grifou-se) 

A construção da lei orçamentária anual deve observar, entre outros, o princípio da exclusividade (art. 165, § 8º, da Constituição) e o princípio da universalidade (art. 165, § 5º, da Constituição). O primeiro determina que a peça orçamentária não conterá matéria estranha à estimativa de receitas e à autorização de despesas; o segundo informa que todas as receitas e todas as despesas de natureza orçamentária devem integrar o orçamento público. 

A análise ora realizada, portanto, deve cingir-se a verificar se as operações listadas pelos §§ 11 e 21 do art. 100 da Constituição se enquadram ou não no conceito de receitas e despesas orçamentárias. Caso a resposta seja negativa, então, por força do princípio orçamentário da exclusividade, não poderão integrar o orçamento público, sendo desnecessária, portanto, a aprovação do referido inciso V. Mas caso a resposta seja positiva, então, por força do princípio da universalidade, as operações devem integrar o orçamento público, tornando a exclusão almejada pelo art. 6º, § 1º, V, do PLDO 2025 incompatível com o texto constitucional. 

Os §§ 11 e 21 do art. 100 da Constituição, introduzidos pela EC nº 113/2021, estão assim positivados: 

 Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim. 

[...] 

§ 11. É facultada ao credor, conforme estabelecido em lei do ente federativo devedor, com auto aplicabilidade para a União, a oferta de créditos líquidos e certos que originalmente lhe são próprios ou adquiridos de terceiros reconhecidos pelo ente federativo ou por decisão judicial transitada em julgado para: 

I - quitação de débitos parcelados ou débitos inscritos em dívida ativa do ente federativo devedor, inclusive em transação resolutiva de litígio, e, subsidiariamente, débitos com a administração autárquica e fundacional do mesmo ente;  

II - compra de imóveis públicos de propriedade do mesmo ente disponibilizados para venda;  

III - pagamento de outorga de delegações de serviços públicos e demais espécies de concessão negocial promovidas pelo mesmo ente;  

IV - aquisição, inclusive minoritária, de participação societária, disponibilizada para venda, do respectivo ente federativo; ou 

V - compra de direitos, disponibilizados para cessão, do respectivo ente federativo, inclusive, no caso da União, da antecipação de valores a serem recebidos a título do excedente em óleo em contratos de partilha de petróleo.  

[...] 

§ 21. Ficam a União e os demais entes federativos, nos montantes que lhes são próprios, desde que aceito por ambas as partes, autorizados a utilizar valores objeto de sentenças transitadas em julgado devidos a pessoa jurídica de direito público para amortizar dívidas, vencidas ou vincendas:  

I - nos contratos de refinanciamento cujos créditos sejam detidos pelo ente federativo que figure como devedor na sentença de que trata o caput deste artigo;  

II - nos contratos em que houve prestação de garantia a outro ente federativo;  

III - nos parcelamentos de tributos ou de contribuições sociais; e 

IV - nas obrigações decorrentes do descumprimento de prestação de contas ou de desvio de recursos. (Grifou-se) 

De pronto, verifica-se que nenhuma das operações acima listadas envolve a troca de fluxos financeiros entre as partes. Isso porque representam, na realidade, a utilização, por parte dos respectivos credores, dos créditos com precatórios como fonte de recursos para honrar a realização de determinados dispêndios (caso dos incisos do § 11) ou para o resgate de dívidas anteriormente contraídas (caso do § 21). 

Tem sido comum a afirmação de que, como o orçamento público somente pode tratar de receitas e despesas orçamentárias, então a execução de operações sem fluxo financeiro poderia ser feita à margem do processo legislativo orçamentário.

Tal entendimento adota como premissa que o enquadramento de operações nos conceitos de receita e despesa orçamentárias pressupõe a ocorrência de fluxos financeiros de entrada e de saída que afetem as disponibilidades da União (aqui, a expressão "Tesouro Nacional" é utilizada para se referir a essas disponibilidades). 

Ocorre que referida premissa está, a nosso sentir, equivocada, donde se conclui que o entendimento trazido pelo parágrafo antecedente não merece prosperar. E a premissa está equivocada porque confunde “característica” das operações orçamentárias com “parâmetro” para se afirmar se determinada operação deve ou não ser enquadrada como de natureza orçamentária. 

Por certo, a imensa maioria das operações ocorridas nos orçamentos públicos (bem como no orçamento de qualquer empresa, família etc.) tem como característica ser realizada mediante a troca de recursos financeiros entre as partes envolvidas. Isso se deve ao fato de que, em regra, o momento em que a entidade obtém (arrecada) fonte de recursos para o financiamento de seus dispêndios difere (no tempo) do momento em que os recursos obtidos são aplicados no pagamento do respectivo dispêndio. São as chamadas “operações indiretas”52, em que os recursos arrecadados precisam ser primeiramente recolhidos ao Tesouro Nacional, para posterior utilização. Exemplos: pagamento de salários de servidores públicos com recursos de impostos arrecadados em mês anterior; compra de veículo novo com recursos de alienação de veículo usado realizada no ano anterior; resgate de dívida com recursos obtidos anteriormente, resgate de dívida a partir de novas  emissões de títulos etc.


É perfeitamente possível, entretanto, que ocorram operações de natureza orçamentária que não envolvam a troca de fluxos financeiros entre as partes envolvidas. Trata-se de “operações diretas”53, que ocorrem quando o momento em que se obtém a fonte de recursos (arrecadação) é o mesmo em que ocorre sua aplicação e, portanto, a materialização do gasto. No caso das operações diretas, como a aplicação dos recursos ocorre concomitantemente à sua arrecadação, não há que se falar em necessidade de recolhê-los ao Tesouro Nacional. Exemplos de operações diretas: compra de veículo novo com base em alienação de veículo usado diretamente à concessionária vendedora do veículo novo; compra de bens financiada com operação de crédito junto ao próprio fornecedor dos bens adquiridos; resgate de dívida junto a credor com lastro na emissão de nova dívida junto ao mesmo credor; pagamento de dívida mobiliária tendo como fonte de recursos a emissão direta de novo título público; cobertura do resultado negativo do BCB com lastro na emissão de títulos públicos; pagamento de precatórios com a utilização de direito da União junto ao credor dos precatórios etc. 


    Se, como afirmado, a presença ou não de fluxo financeiro opera na dimensão das “características” das operações orçamentárias, questiona-se, então, qual seria o critério para se determinar que uma operação deve ou não ser enquadrada em receita orçamentária ou em despesa orçamentária. A nosso sentir, para que se possa efetuar tal enquadramento, é preciso verificar se o dispêndio a ser realizado pelo Estado está sendo direcionado para o alcance de seus objetivos, ou seja, para o alcance dos propósitos almejados pelas políticas públicas. Caso a resposta seja verdadeira, a operação deve ser enquadrada como despesa orçamentária. De outro lado, devem ser obrigatoriamente classificadas como receitas de natureza orçamentária todas as fontes de recursos que se obtém com o propósito de financiar respectivos dispêndios. 

Em outras palavras, o orçamento público deve contemplar autorização para a realização, no exercício financeiro respectivo, de toda e qualquer operação necessária ao alcance dos objetivos do Estado (o que inclui, por exemplos, o pagamento de salário de servidores, a construção de estradas, a manutenção de suas instalações, a devolução de recursos captados junto a terceiros, o pagamento de precatórios), bem como a estimativa de todas as fontes de recursos que se pretende obter para o financiamento das respectivas operações, sejam elas efetivadas por meio de operações indiretas (com trânsito de recursos pelo Tesouro Nacional) ou por meio de operações diretas (onde os recursos são aplicados no mesmo instante em que obtidos). 

Assim, por exemplo, pouco ou nada importa se o pagamento da aquisição de um veículo novo será feito em dinheiro sacado do Tesouro Nacional, se será lastreado por meio de financiamento concedido diretamente pela própria concessionária que vende o veículo novo, ou se será efetuado por intermédio da venda de veículo usado à mesma concessionária, todas essas são operações de natureza orçamentária, uma vez que a aquisição do veículo serve ao alcance dos objetivos almejados pela Administração pública, e somente podem ser realizadas no caso de terem sido previamente autorizadas pela lei orçamentária anual. 

Todo esse entendimento deriva da primeira vedação trazida pelo art. 167 da Constituição54. Não há como despender (aplicar) recursos públicos sem que os mesmos sejam alocados por meio de dotações orçamentárias previamente autorizadas via processo legislativo orçamentário. 

Pois bem. A noção de que as operações orçamentárias podem se realizar “com ou sem fluxo financeiro pelo Tesouro Nacional” é perfeitamente compatível com as regras de reconhecimento da receita e da despesa orçamentárias trazidas pelas normas gerais de direito financeiro e orçamentário positivadas pela Lei nº 4.320/1964. 

Quanto ao momento do reconhecimento das receitas orçamentárias, a Lei nº 4.320/1964 determina55 que seja o da arrecadação (obtenção da fonte de recursos), e não o do recolhimento (depósito dos recursos no Tesouro Nacional). 

Nessa esteira, importante observar que o artigo 5656 da Lei nº 4.320/1964, ao se pronunciar sobre o “recolhimento”, informa apenas que, caso os recursos venham a ser recolhidos aos cofres públicos, deve ser observado o princípio da unidade de tesouraria. Em nenhum momento, frise-se, o transcrito artigo 56 determina que as receitas arrecadadas devem ser todas elas recolhidas ao Tesouro Nacional. 

De outro lado, a mesma Lei nº 4.320/1964, ao dispor sobre as despesas orçamentárias, informa que estas devem ser reconhecidas57 quando do empenho, e não quando do pagamento, o que significa dizer que o saque de recursos do Tesouro Nacional não é o momento e nem é a condição necessária para que se efetue o registro dos dispêndios de natureza orçamentária. 

Feitas tais considerações, passa-se a verificar o teor dos §§ 11 e 21 do art. 100 da Constituição, já transcritos na parte inicial desta seção. 

Com relação ao § 11 do art. 100, vê-se que referido dispositivo faculta ao credor do precatório a utilização do respectivo crédito (ativo) como meio de pagamento em operações realizadas junto ao ente federado devedor.  Isso, contudo, deve-se fazer nos termos de lei editada pelo ente da Federação devedor do precatório58.

Em cada uma das operações tratadas pelos incisos do § 11, o credor do precatório (pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado) utiliza o direito correspondente para adquirir ativos ou satisfazer obrigação junto ao ente devedor. Então, na hipótese de o ente credor do precatório ser uma pessoa jurídica de direito público, atuará com clara intenção de realizar determinadas despesas orçamentárias, a serem classificadas em função na natureza das operações previstas nos incisos I a V do referido parágrafo. O ente devedor do precatório, por sua vez, de acordo com condições previstas em lei própria que editar, aceitará a realização da operação (encontro de contas), o que indica que também exercerá a intenção de realizar a despesa orçamentária, classificada em conformidade como o precatório que estará sendo quitado. 

 Situação análoga se revela no que tange ao § 21 do art. 100 da Carta da República. Como se pode depreender da leitura de seu texto, é permitida, aos entes federados detentores de precatórios, a utilização de referidos créditos como fonte de recursos para o resgate (amortização) de passivos (obrigações) porventura existentes junto ao ente federado devedor do respectivo precatório. 

Bom que se frise que, no caso em tela, a compensação somente poderá ser realizada com o aceite de ambas as partes. Ou seja, os dois lados da operação manifestarão desejo de quitar passivos entre si com lastro em créditos recíprocos. Nesse caso, portanto, em cada um dos lados da operação estará sendo realizada despesa de natureza orçamentária:

           i.           no ente devedor de empréstimos: despesas com juros e encargos e amortização do empréstimo tomado, suportadas pela receita correspondente ao precatório de que é credor; 

          ii.          no entende devedor do precatório – despesa correspondente ao precatório de que é devedor, suportada pelas receitas com juros e encargos e amortização do empréstimo concedido. 

Assim, forçoso concluir no sentido de que a realização das operações listadas pelo § 21 do art. 100 da Constituição depende da inserção de dotação em cada uma das leis orçamentárias dos entes federados envolvidos na operação.

FIM

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