O PLDO 2025, por meio
do art. 6º, § 1º, inciso V, transcrito a seguir, almeja estabelecer que as
operações listadas pelos §§ 11 e 21 do art. 100 da Constituição não sejam
incluídas nos orçamentos fiscal e da seguridade social. Referido anseio também
se fez presente no texto do PLDO 2024, mas não foi aprovado pelo Congresso
Nacional, não vindo a integrar o texto da LDO 2024.
Art. 6º Os
Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social compreenderão o conjunto das receitas
públicas e das despesas dos Poderes, do Ministério Público da União e da
Defensoria Pública da União, de seus fundos, órgãos, autarquias, inclusive
especiais, e fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, das empresas
públicas, sociedades de economia mista e demais entidades em que a União,
direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto
e que dela recebam recursos do Tesouro Nacional, devendo a correspondente
execução orçamentária e financeira, da receita e da despesa, ser registrada na
modalidade total no Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo
Federal - Siafi.
§ 1º
Ressalvada a hipótese prevista no § 3º, ficam excluídos do disposto no caput:
[...]
V - os
atos decorrentes das compensações realizadas a partir das hipóteses
previstas nos § 11 e § 21 do art. 100 da Constituição. (Grifou-se)
A construção da lei
orçamentária anual deve observar, entre outros, o princípio da exclusividade
(art. 165, § 8º, da Constituição) e o princípio da universalidade (art. 165, §
5º, da Constituição). O primeiro determina que a peça orçamentária não conterá
matéria estranha à estimativa de receitas e à autorização de despesas; o
segundo informa que todas as receitas e todas as despesas de natureza
orçamentária devem integrar o orçamento público.
A análise ora
realizada, portanto, deve cingir-se a verificar se as operações listadas pelos
§§ 11 e 21 do art. 100 da Constituição se enquadram ou não no conceito de
receitas e despesas orçamentárias. Caso a resposta seja negativa, então, por
força do princípio orçamentário da exclusividade, não poderão integrar o
orçamento público, sendo desnecessária, portanto, a aprovação do referido
inciso V. Mas caso a resposta seja positiva, então, por força do princípio da
universalidade, as operações devem integrar o orçamento público, tornando a
exclusão almejada pelo art. 6º, § 1º, V, do PLDO 2025 incompatível com o texto
constitucional.
Os §§ 11 e 21 do art.
100 da Constituição, introduzidos pela EC nº 113/2021, estão assim
positivados:
Art. 100.
Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais,
Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão
exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta
dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas
dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.
[...]
§ 11. É
facultada ao credor, conforme estabelecido em lei do ente federativo
devedor, com auto aplicabilidade para a União, a oferta de créditos líquidos e
certos que originalmente lhe são próprios ou adquiridos de terceiros
reconhecidos pelo ente federativo ou por decisão judicial transitada em julgado
para:
I - quitação
de débitos parcelados ou débitos inscritos em dívida ativa do ente federativo
devedor, inclusive em transação resolutiva de litígio, e, subsidiariamente,
débitos com a administração autárquica e fundacional do mesmo ente;
II - compra
de imóveis públicos de propriedade do mesmo ente disponibilizados para
venda;
III - pagamento
de outorga de delegações de serviços públicos e demais espécies de concessão
negocial promovidas pelo mesmo ente;
IV - aquisição,
inclusive minoritária, de participação societária, disponibilizada para venda,
do respectivo ente federativo; ou
V - compra
de direitos, disponibilizados para cessão, do respectivo ente federativo,
inclusive, no caso da União, da antecipação de valores a serem recebidos a
título do excedente em óleo em contratos de partilha de petróleo.
[...]
§ 21. Ficam
a União e os demais entes federativos, nos montantes que lhes são próprios,
desde que aceito por ambas as partes, autorizados a utilizar valores
objeto de sentenças transitadas em julgado devidos a pessoa jurídica de direito
público para amortizar dívidas, vencidas ou vincendas:
I - nos
contratos de refinanciamento cujos créditos sejam detidos pelo ente federativo
que figure como devedor na sentença de que trata o caput deste artigo;
II - nos contratos
em que houve prestação de garantia a outro ente federativo;
III - nos
parcelamentos de tributos ou de contribuições sociais; e
IV - nas
obrigações decorrentes do descumprimento de prestação de contas ou de desvio de
recursos. (Grifou-se)
De pronto, verifica-se
que nenhuma das operações acima listadas envolve a troca de fluxos financeiros
entre as partes. Isso porque representam, na realidade, a utilização, por parte
dos respectivos credores, dos créditos com precatórios como fonte de recursos
para honrar a realização de determinados dispêndios (caso dos incisos do § 11)
ou para o resgate de dívidas anteriormente contraídas (caso do § 21).
Tem sido comum a
afirmação de que, como o orçamento público somente pode tratar de receitas e
despesas orçamentárias, então a execução de operações sem fluxo financeiro
poderia ser feita à margem do processo legislativo orçamentário.
Tal entendimento adota
como premissa que o enquadramento de operações nos conceitos de receita e
despesa orçamentárias pressupõe a ocorrência de fluxos financeiros de entrada e
de saída que afetem as disponibilidades da União (aqui, a expressão
"Tesouro Nacional" é utilizada para se referir a essas
disponibilidades).
Ocorre que referida
premissa está, a nosso sentir, equivocada, donde se conclui que o entendimento
trazido pelo parágrafo antecedente não merece prosperar. E a premissa está
equivocada porque confunde “característica” das operações orçamentárias com
“parâmetro” para se afirmar se determinada operação deve ou não ser enquadrada
como de natureza orçamentária.
Por certo, a imensa
maioria das operações ocorridas nos orçamentos públicos (bem como no orçamento
de qualquer empresa, família etc.) tem como característica ser realizada
mediante a troca de recursos financeiros entre as partes envolvidas. Isso se
deve ao fato de que, em regra, o momento em que a entidade obtém (arrecada)
fonte de recursos para o financiamento de seus dispêndios difere (no tempo) do
momento em que os recursos obtidos são aplicados no pagamento do respectivo
dispêndio. São as chamadas “operações indiretas”52, em que os
recursos arrecadados precisam ser primeiramente recolhidos ao Tesouro Nacional,
para posterior utilização. Exemplos: pagamento de salários de servidores
públicos com recursos de impostos arrecadados em mês anterior; compra de
veículo novo com recursos de alienação de veículo usado realizada no ano
anterior; resgate de dívida com recursos obtidos anteriormente, resgate de
dívida a partir de novas emissões de títulos etc.

É perfeitamente
possível, entretanto, que ocorram operações de natureza orçamentária que não
envolvam a troca de fluxos financeiros entre as partes envolvidas. Trata-se de
“operações diretas”53, que ocorrem quando o momento em que se obtém
a fonte de recursos (arrecadação) é o mesmo em que ocorre sua aplicação e,
portanto, a materialização do gasto. No caso das operações diretas, como a
aplicação dos recursos ocorre concomitantemente à sua arrecadação, não há que
se falar em necessidade de recolhê-los ao Tesouro Nacional. Exemplos de
operações diretas: compra de veículo novo com base em alienação de veículo
usado diretamente à concessionária vendedora do veículo novo; compra de bens
financiada com operação de crédito junto ao próprio fornecedor dos bens
adquiridos; resgate de dívida junto a credor com lastro na emissão de nova
dívida junto ao mesmo credor; pagamento de dívida mobiliária tendo como fonte
de recursos a emissão direta de novo título público; cobertura do resultado
negativo do BCB com lastro na emissão de títulos públicos; pagamento de
precatórios com a utilização de direito da União junto ao credor dos
precatórios etc.

Se, como afirmado, a
presença ou não de fluxo financeiro opera na dimensão das “características” das
operações orçamentárias, questiona-se, então, qual seria o critério para se
determinar que uma operação deve ou não ser enquadrada em receita orçamentária
ou em despesa orçamentária. A nosso sentir, para que se possa efetuar tal
enquadramento, é preciso verificar se o dispêndio a ser realizado pelo Estado
está sendo direcionado para o alcance de seus objetivos, ou seja, para o
alcance dos propósitos almejados pelas políticas públicas. Caso a resposta seja
verdadeira, a operação deve ser enquadrada como despesa orçamentária. De outro
lado, devem ser obrigatoriamente classificadas como receitas de natureza
orçamentária todas as fontes de recursos que se obtém com o propósito de
financiar respectivos dispêndios. Em outras palavras, o
orçamento público deve contemplar autorização para a realização, no exercício
financeiro respectivo, de toda e qualquer operação necessária ao alcance dos
objetivos do Estado (o que inclui, por exemplos, o pagamento de salário de
servidores, a construção de estradas, a manutenção de suas instalações, a
devolução de recursos captados junto a terceiros, o pagamento de precatórios),
bem como a estimativa de todas as fontes de recursos que se pretende obter para
o financiamento das respectivas operações, sejam elas efetivadas por meio de
operações indiretas (com trânsito de recursos pelo Tesouro Nacional) ou por
meio de operações diretas (onde os recursos são aplicados no mesmo instante em
que obtidos).
Assim, por exemplo,
pouco ou nada importa se o pagamento da aquisição de um veículo novo será feito
em dinheiro sacado do Tesouro Nacional, se será lastreado por meio de
financiamento concedido diretamente pela própria concessionária que vende o
veículo novo, ou se será efetuado por intermédio da venda de veículo usado à
mesma concessionária, todas essas são operações de natureza orçamentária, uma
vez que a aquisição do veículo serve ao alcance dos objetivos almejados pela
Administração pública, e somente podem ser realizadas no caso de terem sido
previamente autorizadas pela lei orçamentária anual.
Todo esse entendimento
deriva da primeira vedação trazida pelo art. 167 da Constituição54.
Não há como despender (aplicar) recursos públicos sem que os mesmos sejam
alocados por meio de dotações orçamentárias previamente autorizadas via
processo legislativo orçamentário.
Pois bem. A noção de
que as operações orçamentárias podem se realizar “com ou sem fluxo financeiro
pelo Tesouro Nacional” é perfeitamente compatível com as regras de
reconhecimento da receita e da despesa orçamentárias trazidas pelas normas
gerais de direito financeiro e orçamentário positivadas pela Lei nº
4.320/1964.
Quanto ao momento do
reconhecimento das receitas orçamentárias, a Lei nº 4.320/1964 determina55
que seja o da arrecadação (obtenção da fonte de recursos), e não o do recolhimento
(depósito dos recursos no Tesouro Nacional).
Nessa esteira,
importante observar que o artigo 5656 da Lei nº 4.320/1964, ao se
pronunciar sobre o “recolhimento”, informa apenas que, caso os recursos venham
a ser recolhidos aos cofres públicos, deve ser observado o princípio da unidade
de tesouraria. Em nenhum momento, frise-se, o transcrito artigo 56 determina
que as receitas arrecadadas devem ser todas elas recolhidas ao Tesouro
Nacional.
De outro lado, a mesma
Lei nº 4.320/1964, ao dispor sobre as despesas orçamentárias, informa que estas
devem ser reconhecidas57 quando do empenho, e não quando do pagamento,
o que significa dizer que o saque de recursos do Tesouro Nacional não é o
momento e nem é a condição necessária para que se efetue o registro dos
dispêndios de natureza orçamentária.
Feitas tais
considerações, passa-se a verificar o teor dos §§ 11 e 21 do art. 100 da
Constituição, já transcritos na parte inicial desta seção.
Com relação ao § 11 do
art. 100, vê-se que referido dispositivo faculta ao credor do precatório a
utilização do respectivo crédito (ativo) como meio de pagamento em operações
realizadas junto ao ente federado devedor. Isso, contudo, deve-se fazer
nos termos de lei editada pelo ente da Federação devedor do precatório58.
Em cada uma das
operações tratadas pelos incisos do § 11, o credor do precatório (pessoa física
ou jurídica, de direito público ou privado) utiliza o direito correspondente
para adquirir ativos ou satisfazer obrigação junto ao ente devedor. Então, na
hipótese de o ente credor do precatório ser uma pessoa jurídica de direito
público, atuará com clara intenção de realizar determinadas despesas
orçamentárias, a serem classificadas em função na natureza das operações
previstas nos incisos I a V do referido parágrafo. O ente devedor do
precatório, por sua vez, de acordo com condições previstas em lei própria que
editar, aceitará a realização da operação (encontro de contas), o que indica
que também exercerá a intenção de realizar a despesa orçamentária, classificada
em conformidade como o precatório que estará sendo quitado.
Situação análoga
se revela no que tange ao § 21 do art. 100 da Carta da República. Como se pode
depreender da leitura de seu texto, é permitida, aos entes federados detentores
de precatórios, a utilização de referidos créditos como fonte de recursos para
o resgate (amortização) de passivos (obrigações) porventura existentes junto ao
ente federado devedor do respectivo precatório.
Bom que se frise que,
no caso em tela, a compensação somente poderá ser realizada com o aceite de
ambas as partes. Ou seja, os dois lados da operação manifestarão desejo de
quitar passivos entre si com lastro em créditos recíprocos. Nesse caso,
portanto, em cada um dos lados da operação estará sendo realizada despesa de
natureza orçamentária:
i.
no ente devedor
de empréstimos: despesas com juros e encargos e amortização do empréstimo
tomado, suportadas pela receita correspondente ao precatório de que é
credor;
ii.
no entende devedor do
precatório – despesa correspondente ao precatório de que é devedor,
suportada pelas receitas com juros e encargos e amortização do empréstimo
concedido.
Assim, forçoso
concluir no sentido de que a realização das operações listadas pelo § 21 do
art. 100 da Constituição depende da inserção de dotação em cada uma das leis
orçamentárias dos entes federados envolvidos na operação.
FIM