AS EMISSÕES DIRETAS DE TÍTULOS PÚBLICOS ÀS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS FEDERAIS (2008 - 2014): A VIABILIZAÇÃO DA ESTRATÉGIA DE EXPANSÃO DO CRÉDITO PÚBLICO À LUZ DO DIREITO FINANCEIRO.

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AUTORES
Antonio Carlos Costa d'Ávila Carvalho Júnior - Professor de Orçamento Público e Gestão Fiscal - professordavila@hotmail.com
Murilo Ferreira Viana - mestre em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) - murilofv1@hotmail.com.

OBSERVAÇÃO: permitida a reprodução, desde que citadas a fonte e os autores.

Resumo

Este artigo discute a hipótese de que a estratégia adotada pelo governo federal para viabilizar a expansão do crédito público pelas instituições financeiras federais (IFF), entre 2008 e 2014, mostrou-se não aderente às mais diversas normas legais das finanças públicas. Evidenciou-se, na primeira seção, que, em vista sobretudo do elevado impacto negativo potencial sobre o resultado primário e sobre o endividamento líquido do setor público (DLSP) e da ausência de disponibilidade de recursos financeiros, o governo federal optou pela concessão cruzada de crédito entre a União (por meio do Tesouro Nacional - TN) e as respectivas IFFs. Com impacto neutro sobre o resultado primário e de DLSP, a forte expansão do crédito público tornou-se possível com a adoção de uma estratégia sustentada na expressiva emissão direta de títulos públicos como crédito - ao largo do processo orçamentário - concedido pela União às IFFs. Em contrapartida, as instituições financeiras celebraram contratos de mútuo - passivo da IFF e ativo da União -, muitos dos quais com atributos especialíssimos, classificados como Instrumento Híbrido de Capital e Dívida (IHCD). A segunda seção, por sua vez, trouxe evidências de que a estratégia adotada pelo governo federal, por meio de empréstimos cruzados entre o TN e as IFFs, por fora do orçamento, manifestou-se não aderente às leis do Direito Financeiro pátrio, configurando, inclusive, evidente afronta aos ditames da Constituição Federal.

Continua...


O PROBLEMA SERIA MESMO A SELIC?

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AUTOR: Antonio Carlos Costa d'Ávila Carvalho Júnior - Professor de Orçamento Público e Gestão Fiscal - professordavila@hotmail.com

OBSERVAÇÃO: permitida a reprodução, desde que citadas a fonte e o autor.

Entre 2005 e 2012, a União, por meio do Banco Central do Brasil (BCB), adquiriu cerca de US$ 320 bilhões em reservas internacionais. Ao mesmo tempo em que passaram a servir de seguro contra crises externas, as reservas foram o combustível para a máquina de financiamento infinito criada pela Lei 11.803/2008 (conversão da MP 435/2008).

Funcionava assim: quando a taxa de câmbio aumentava, o lucro cambial semestral – meramente contábil – auferido pelo BCB era depositado (em Reais) na Conta Única do Tesouro Nacional (CUTN); quando diminuía, o prejuízo cambial era coberto pelo TN, mas com a emissão de títulos para a carteira da autoridade monetária, e não com a devolução dos Reais transferidos anteriormente. Assim, de um lado, o TN teria vultosos recursos para resgatar (vinculação criada pela MPV 435) a dívida pública mobiliária e, de outro, o BCB teria lastro suficiente para enxugar a liquidez criada no caso de o TN utilizar os Reais para resgatar títulos em mercado.

Em 2009, o Tribunal de Contas da União foi alertado sobre a inconstitucionalidade e a assimetria da máquina de financiamento infinito. A Egrégia Corte, entretanto, não concordou com o entendimento dos auditores, e determinou o arquivamento dos autos e o encaminhamento de cópia do acórdão (1259/2011-TCU-P), do voto e do relatório ao Presidente do BCB e ao Ministro da Fazenda. 

Nos anos de 2008 a 2018, toda essa engrenagem foi responsável pela injeção de mais de R$ 700 bilhões “na veia” da CUTN. Grande parte desse montante serviu de funding para a monetização dos empréstimos feitos pela União às instituições financeiras federais (IFFs). Ao contrário do que sempre foi publicado pelos meios de comunicação, o TN, em vez de captar recursos em mercado para, em seguida, emprestar aos bancos federais, realizava operação de triangulação (para detalhes, ver teor do Acórdão 56/2021-TCU-Plenário) que consistia no seguinte: União e IFF assinavam contrato de mútuo; a União emitia títulos públicos diretamente à IFF; graças aos recursos depositados pelo BCB na CUTN (por meio da máquina de financiamento infinito), a União resgatava os títulos que estavam na carteira da IFF respectiva.

Com tanto dinheiro na CUTN destinado, por lei, ao resgate da dívida pública, a “vontade” de fazer superávit primário (que serve justamente para o pagamento da dívida pública) parece ter perdido força em referido período. Por que impor à sociedade tal sacrifício se o mecanismo de triangulação com o BCB viabilizaria dinheiro em abundância para pagar os credores da União?

A compra de reservas internacionais, a monetização das IFFs com base em recursos oriundos do próprio BCB e o acúmulo de déficits primários (R$ 1,4 trilhão no período 2014 a 2021) foram responsáveis pela elevação brutal da liquidez da economia, representada pelo aumento do estoque de compromissadas em cerca de 20 pontos percentuais do PIB entre dez/2005 (1,7% PIB) e set/2020 (21,6% PIB). De lá pra cá (jan/2023), o montante das compromissadas diminuiu para 11,5% PIB, graças à venda de reservas internacionais, à devolução, pelas IFFs, de parcela dos recursos antes aportados pela União, ao superávit primário obtido no exercício financeiro de 2022, e graças à aprovação da lei (Lei nº 14.185/2021) que criou os depósitos voluntários remunerados no BCB. Em reais, o saldo atual é de R$ 1.069,4 bilhões, com prazo médio de vencimento de apenas 4,9 dias úteis. Considerando-se apenas o montante “refinanciado” no over night, o valor é de R$ 984,8 bilhões. No que tange aos juros apropriados às compromissadas, foram mais de R$ 138 bilhões nos últimos doze meses. 

A lei e a lógica determinam que submeter as operações de cunho monetário a determinado limite ou a prévia autorização legislativa (orçamentária, por exemplo) poderia trazer mais prejuízos do que benefícios, além de comprometer a atuação da autoridade monetária no controle da inflação. Porém, apenas a título de exercício, seria interessante vislumbrar qual seria o montante do orçamento público se, aos fluxos financeiros envolvidos na realização das operações compromissadas, fosse dado o mesmo tratamento que é dispensado às emissões e resgates da dívida pública mobiliária federal.

Considerando que são cerca de 250 dias úteis no ano, as compromissadas, dado o prazo médio, seriam “refinanciadas” 51 vezes em 2023, o que daria um total de R$ 54,8 trilhões em “receitas com emissões” de novas operações e em “despesas com o resgate” das operações vincendas. Sendo assim, o valor do “refinanciamento da dívida pública”, na Lei Orçamentária Anual da União para 2023, passaria de R$ 2,0 trilhões para R$ 56,8 trilhões, elevando o valor total da LOA2023 a R$ 60,1 trilhões, contra os atuais R$ 5,3 trilhões.

No início de 2006, a situação era inversa. O saldo das compromissadas estava em R$ 57,3 bilhões, refinanciadas 4,5 vezes em 250 dias úteis (prazo médio de 51 dias). No ano, seriam R$ 258 bilhões, valor três vezes menor que o do refinanciamento da dívida pública constante da LOA2006: R$ 837,5 bilhões.

Pois bem. Graças à aprovação da Lei nº 13.820/2019, a máquina de financiamento infinito deixou de operar (embora possa voltar a funcionar a qualquer momento, pois o combustível ainda existe). O problema monetário, no entanto, está aí, para quem quiser ver. Quanto ao fiscal, lutamos desesperadamente por mais déficits. Nesse sentido, caberia questionar: o problema seria mesmo a Selic?

FIM


PRECATÓRIOS - ORÇAMENTO PÚBLICO versus Art. 100, §§ 11 e 21, da CF/1988

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AUTORES: Antonio Carlos Costa d'Ávila Carvalho Júnior - Professor de Orçamento Público e Gestão Fiscal - professordavila@hotmail.com, em colaboração com equipe de consultores da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. 


OBSERVAÇÃO: permitida a reprodução, desde que citadas a fonte e o autor.


O PLDO 2025, por meio do art. 6º, § 1º, inciso V, transcrito a seguir, almeja estabelecer que as operações listadas pelos §§ 11 e 21 do art. 100 da Constituição não sejam incluídas nos orçamentos fiscal e da seguridade social. Referido anseio também se fez presente no texto do PLDO 2024, mas não foi aprovado pelo Congresso Nacional, não vindo a integrar o texto da LDO 2024.

Art. 6º Os Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social compreenderão o conjunto das receitas públicas e das despesas dos Poderes, do Ministério Público da União e da Defensoria Pública da União, de seus fundos, órgãos, autarquias, inclusive especiais, e fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, das empresas públicas, sociedades de economia mista e demais entidades em que a União, direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto e que dela recebam recursos do Tesouro Nacional, devendo a correspondente execução orçamentária e financeira, da receita e da despesa, ser registrada na modalidade total no Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal - Siafi. 

§ 1º Ressalvada a hipótese prevista no § 3º, ficam excluídos do disposto no caput: 

[...] 

V - os atos decorrentes das compensações realizadas a partir das hipóteses previstas nos § 11 e § 21 do art. 100 da Constituição. (Grifou-se) 

A construção da lei orçamentária anual deve observar, entre outros, o princípio da exclusividade (art. 165, § 8º, da Constituição) e o princípio da universalidade (art. 165, § 5º, da Constituição). O primeiro determina que a peça orçamentária não conterá matéria estranha à estimativa de receitas e à autorização de despesas; o segundo informa que todas as receitas e todas as despesas de natureza orçamentária devem integrar o orçamento público. 

A análise ora realizada, portanto, deve cingir-se a verificar se as operações listadas pelos §§ 11 e 21 do art. 100 da Constituição se enquadram ou não no conceito de receitas e despesas orçamentárias. Caso a resposta seja negativa, então, por força do princípio orçamentário da exclusividade, não poderão integrar o orçamento público, sendo desnecessária, portanto, a aprovação do referido inciso V. Mas caso a resposta seja positiva, então, por força do princípio da universalidade, as operações devem integrar o orçamento público, tornando a exclusão almejada pelo art. 6º, § 1º, V, do PLDO 2025 incompatível com o texto constitucional. 

Os §§ 11 e 21 do art. 100 da Constituição, introduzidos pela EC nº 113/2021, estão assim positivados: 

 Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim. 

[...] 

§ 11. É facultada ao credor, conforme estabelecido em lei do ente federativo devedor, com auto aplicabilidade para a União, a oferta de créditos líquidos e certos que originalmente lhe são próprios ou adquiridos de terceiros reconhecidos pelo ente federativo ou por decisão judicial transitada em julgado para: 

I - quitação de débitos parcelados ou débitos inscritos em dívida ativa do ente federativo devedor, inclusive em transação resolutiva de litígio, e, subsidiariamente, débitos com a administração autárquica e fundacional do mesmo ente;  

II - compra de imóveis públicos de propriedade do mesmo ente disponibilizados para venda;  

III - pagamento de outorga de delegações de serviços públicos e demais espécies de concessão negocial promovidas pelo mesmo ente;  

IV - aquisição, inclusive minoritária, de participação societária, disponibilizada para venda, do respectivo ente federativo; ou 

V - compra de direitos, disponibilizados para cessão, do respectivo ente federativo, inclusive, no caso da União, da antecipação de valores a serem recebidos a título do excedente em óleo em contratos de partilha de petróleo.  

[...] 

§ 21. Ficam a União e os demais entes federativos, nos montantes que lhes são próprios, desde que aceito por ambas as partes, autorizados a utilizar valores objeto de sentenças transitadas em julgado devidos a pessoa jurídica de direito público para amortizar dívidas, vencidas ou vincendas:  

I - nos contratos de refinanciamento cujos créditos sejam detidos pelo ente federativo que figure como devedor na sentença de que trata o caput deste artigo;  

II - nos contratos em que houve prestação de garantia a outro ente federativo;  

III - nos parcelamentos de tributos ou de contribuições sociais; e 

IV - nas obrigações decorrentes do descumprimento de prestação de contas ou de desvio de recursos. (Grifou-se) 

De pronto, verifica-se que nenhuma das operações acima listadas envolve a troca de fluxos financeiros entre as partes. Isso porque representam, na realidade, a utilização, por parte dos respectivos credores, dos créditos com precatórios como fonte de recursos para honrar a realização de determinados dispêndios (caso dos incisos do § 11) ou para o resgate de dívidas anteriormente contraídas (caso do § 21). 

Tem sido comum a afirmação de que, como o orçamento público somente pode tratar de receitas e despesas orçamentárias, então a execução de operações sem fluxo financeiro poderia ser feita à margem do processo legislativo orçamentário.

Tal entendimento adota como premissa que o enquadramento de operações nos conceitos de receita e despesa orçamentárias pressupõe a ocorrência de fluxos financeiros de entrada e de saída que afetem as disponibilidades da União (aqui, a expressão "Tesouro Nacional" é utilizada para se referir a essas disponibilidades). 

Ocorre que referida premissa está, a nosso sentir, equivocada, donde se conclui que o entendimento trazido pelo parágrafo antecedente não merece prosperar. E a premissa está equivocada porque confunde “característica” das operações orçamentárias com “parâmetro” para se afirmar se determinada operação deve ou não ser enquadrada como de natureza orçamentária. 

Por certo, a imensa maioria das operações ocorridas nos orçamentos públicos (bem como no orçamento de qualquer empresa, família etc.) tem como característica ser realizada mediante a troca de recursos financeiros entre as partes envolvidas. Isso se deve ao fato de que, em regra, o momento em que a entidade obtém (arrecada) fonte de recursos para o financiamento de seus dispêndios difere (no tempo) do momento em que os recursos obtidos são aplicados no pagamento do respectivo dispêndio. São as chamadas “operações indiretas”52, em que os recursos arrecadados precisam ser primeiramente recolhidos ao Tesouro Nacional, para posterior utilização. Exemplos: pagamento de salários de servidores públicos com recursos de impostos arrecadados em mês anterior; compra de veículo novo com recursos de alienação de veículo usado realizada no ano anterior; resgate de dívida com recursos obtidos anteriormente, resgate de dívida a partir de novas  emissões de títulos etc.


É perfeitamente possível, entretanto, que ocorram operações de natureza orçamentária que não envolvam a troca de fluxos financeiros entre as partes envolvidas. Trata-se de “operações diretas”53, que ocorrem quando o momento em que se obtém a fonte de recursos (arrecadação) é o mesmo em que ocorre sua aplicação e, portanto, a materialização do gasto. No caso das operações diretas, como a aplicação dos recursos ocorre concomitantemente à sua arrecadação, não há que se falar em necessidade de recolhê-los ao Tesouro Nacional. Exemplos de operações diretas: compra de veículo novo com base em alienação de veículo usado diretamente à concessionária vendedora do veículo novo; compra de bens financiada com operação de crédito junto ao próprio fornecedor dos bens adquiridos; resgate de dívida junto a credor com lastro na emissão de nova dívida junto ao mesmo credor; pagamento de dívida mobiliária tendo como fonte de recursos a emissão direta de novo título público; cobertura do resultado negativo do BCB com lastro na emissão de títulos públicos; pagamento de precatórios com a utilização de direito da União junto ao credor dos precatórios etc. 


    Se, como afirmado, a presença ou não de fluxo financeiro opera na dimensão das “características” das operações orçamentárias, questiona-se, então, qual seria o critério para se determinar que uma operação deve ou não ser enquadrada em receita orçamentária ou em despesa orçamentária. A nosso sentir, para que se possa efetuar tal enquadramento, é preciso verificar se o dispêndio a ser realizado pelo Estado está sendo direcionado para o alcance de seus objetivos, ou seja, para o alcance dos propósitos almejados pelas políticas públicas. Caso a resposta seja verdadeira, a operação deve ser enquadrada como despesa orçamentária. De outro lado, devem ser obrigatoriamente classificadas como receitas de natureza orçamentária todas as fontes de recursos que se obtém com o propósito de financiar respectivos dispêndios. 

Em outras palavras, o orçamento público deve contemplar autorização para a realização, no exercício financeiro respectivo, de toda e qualquer operação necessária ao alcance dos objetivos do Estado (o que inclui, por exemplos, o pagamento de salário de servidores, a construção de estradas, a manutenção de suas instalações, a devolução de recursos captados junto a terceiros, o pagamento de precatórios), bem como a estimativa de todas as fontes de recursos que se pretende obter para o financiamento das respectivas operações, sejam elas efetivadas por meio de operações indiretas (com trânsito de recursos pelo Tesouro Nacional) ou por meio de operações diretas (onde os recursos são aplicados no mesmo instante em que obtidos). 

Assim, por exemplo, pouco ou nada importa se o pagamento da aquisição de um veículo novo será feito em dinheiro sacado do Tesouro Nacional, se será lastreado por meio de financiamento concedido diretamente pela própria concessionária que vende o veículo novo, ou se será efetuado por intermédio da venda de veículo usado à mesma concessionária, todas essas são operações de natureza orçamentária, uma vez que a aquisição do veículo serve ao alcance dos objetivos almejados pela Administração pública, e somente podem ser realizadas no caso de terem sido previamente autorizadas pela lei orçamentária anual. 

Todo esse entendimento deriva da primeira vedação trazida pelo art. 167 da Constituição54. Não há como despender (aplicar) recursos públicos sem que os mesmos sejam alocados por meio de dotações orçamentárias previamente autorizadas via processo legislativo orçamentário. 

Pois bem. A noção de que as operações orçamentárias podem se realizar “com ou sem fluxo financeiro pelo Tesouro Nacional” é perfeitamente compatível com as regras de reconhecimento da receita e da despesa orçamentárias trazidas pelas normas gerais de direito financeiro e orçamentário positivadas pela Lei nº 4.320/1964. 

Quanto ao momento do reconhecimento das receitas orçamentárias, a Lei nº 4.320/1964 determina55 que seja o da arrecadação (obtenção da fonte de recursos), e não o do recolhimento (depósito dos recursos no Tesouro Nacional). 

Nessa esteira, importante observar que o artigo 5656 da Lei nº 4.320/1964, ao se pronunciar sobre o “recolhimento”, informa apenas que, caso os recursos venham a ser recolhidos aos cofres públicos, deve ser observado o princípio da unidade de tesouraria. Em nenhum momento, frise-se, o transcrito artigo 56 determina que as receitas arrecadadas devem ser todas elas recolhidas ao Tesouro Nacional. 

De outro lado, a mesma Lei nº 4.320/1964, ao dispor sobre as despesas orçamentárias, informa que estas devem ser reconhecidas57 quando do empenho, e não quando do pagamento, o que significa dizer que o saque de recursos do Tesouro Nacional não é o momento e nem é a condição necessária para que se efetue o registro dos dispêndios de natureza orçamentária. 

Feitas tais considerações, passa-se a verificar o teor dos §§ 11 e 21 do art. 100 da Constituição, já transcritos na parte inicial desta seção. 

Com relação ao § 11 do art. 100, vê-se que referido dispositivo faculta ao credor do precatório a utilização do respectivo crédito (ativo) como meio de pagamento em operações realizadas junto ao ente federado devedor.  Isso, contudo, deve-se fazer nos termos de lei editada pelo ente da Federação devedor do precatório58.

Em cada uma das operações tratadas pelos incisos do § 11, o credor do precatório (pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado) utiliza o direito correspondente para adquirir ativos ou satisfazer obrigação junto ao ente devedor. Então, na hipótese de o ente credor do precatório ser uma pessoa jurídica de direito público, atuará com clara intenção de realizar determinadas despesas orçamentárias, a serem classificadas em função na natureza das operações previstas nos incisos I a V do referido parágrafo. O ente devedor do precatório, por sua vez, de acordo com condições previstas em lei própria que editar, aceitará a realização da operação (encontro de contas), o que indica que também exercerá a intenção de realizar a despesa orçamentária, classificada em conformidade como o precatório que estará sendo quitado. 

 Situação análoga se revela no que tange ao § 21 do art. 100 da Carta da República. Como se pode depreender da leitura de seu texto, é permitida, aos entes federados detentores de precatórios, a utilização de referidos créditos como fonte de recursos para o resgate (amortização) de passivos (obrigações) porventura existentes junto ao ente federado devedor do respectivo precatório. 

Bom que se frise que, no caso em tela, a compensação somente poderá ser realizada com o aceite de ambas as partes. Ou seja, os dois lados da operação manifestarão desejo de quitar passivos entre si com lastro em créditos recíprocos. Nesse caso, portanto, em cada um dos lados da operação estará sendo realizada despesa de natureza orçamentária:

           i.           no ente devedor de empréstimos: despesas com juros e encargos e amortização do empréstimo tomado, suportadas pela receita correspondente ao precatório de que é credor; 

          ii.          no entende devedor do precatório – despesa correspondente ao precatório de que é devedor, suportada pelas receitas com juros e encargos e amortização do empréstimo concedido. 

Assim, forçoso concluir no sentido de que a realização das operações listadas pelo § 21 do art. 100 da Constituição depende da inserção de dotação em cada uma das leis orçamentárias dos entes federados envolvidos na operação.

FIM

PEDALADAS FISCAIS "CLÁSSICAS" e as "FORA DA LEI"

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AUTOR: Antonio Carlos Costa d'Ávila Carvalho Júnior - Professor de Orçamento Público e Gestão Fiscal - professordavila@hotmail.com

OBSERVAÇÃO: permitida a reprodução, desde que citadas a fonte e o autor.

PEDALADAS CLÁSSICAS E AS FORA DA LEI

 Tem sido comum ler artigos e postagens que utilizam a expressão "pedalada fiscal" para fazer referência a toda e qualquer proposta de malabarismo orçamentário. O uso genérico e nada cuidadoso dessa dupla de palavras, ao mesmo tempo em que pouco contribui para o entendimento das mais recentes e criativas operações, muito serve para normalizar os atos que deram azo ao impeachment da ex-presidente da República. Entender a diferença entre as pedaladas "clássicas" e as pedaladas "fora da lei" é fundamental para que não repitamos os erros do passado. Explico.

 O resultado primário considerado oficial para fins de verificação do alcance das metas fiscais é publicado mensalmente pelo Banco Central (BCB), que o apura pela variação do saldo da dívida líquida do setor público (DLSP), descontando-se os juros apropriados pelo regime de competência. Apenas as obrigações e os ativos financeiros registrados junto a entidades do sistema financeiro, ou que tenham se originado de operações por elas sancionadas ou intermediadas, integram o montante da dívida líquida. Referido escopo determina, indiretamente, o regime contábil da apuração: o momento do financiamento.

 Com o propósito de publicar estatísticas que evidenciem situação fiscal melhor do que a real, o governo pratica "pedaladas fiscais", agindo de modo a postergar o registro da despesa primária.

 Chamo de "clássica" a pedalada que alcança seu objetivo fazendo uso das regras estabelecidas pela própria metodologia oficial. Nesse caso, sabedor de que o atraso no pagamento de determinada obrigação não provocará aumento da DLSP, uma vez que, por não atender aos critérios metodológicos, o passivo respectivo não será captado pela estatística fiscal, o governo posterga para outro mês o desembolso dos recursos, adiando o cômputo da variação primária deficitária pelo BCB. São exemplos de pedaladas "clássicas", o parcelamento de precatórios e os atrasos nos repasses de recursos de royalties e do salário-educação a estados e municípios. Estes últimos, identificados em 2014 pelo Tribunal de Contas da União (TCU), no processo das "pedaladas".

 Por outro lado, as pedaladas "fora da lei" são as que, além de descumprirem as regras ditadas pela contabilidade oficial, envolvem a realização de operações que são contrárias, vedadas ou praticadas com inobservância de outras normas. Pouco antes da eleição de 2014, por exemplo, o governo viu-se sem espaço fiscal para honrar o pagamento de várias despesas. Nos casos do seguro desemprego, do abono salarial e do bolsa família, atrasar o pagamento dessas obrigações seria uma pedalada "clássica" (dívidas junto a pessoas físicas não são captadas pela estatística), mas traria elevado ônus político. A solução, nada ortodoxa, adotada foi: utilizar recursos da Caixa Econômica para honrar os dispêndios em nome da União (operação vedada pelo art. 36 da Lei de Responsabilidade Fiscal e passível de enquadramento no art. 359-A do CP); deixar de registrar, na DLSP, a dívida junto à Caixa (contrariando a metodologia); e executar os dispêndios à margem do orçamento (ato tipificado pelo art. 359-D do CP), para que outras despesas de significativa exposição e bônus político, inseridas no processo orçamentário, não precisassem ser contingenciadas.

 Outro tipo de pedalada "fora da lei" identificada em 2014 foi praticada no âmbito do PSI/BNDES/Finame. De acordo com a lei que rege o programa, ao final de cada semestre (período de equalização), a União deveria pagar "equalizações de juros" ao BNDES/Finame, para repor à instituição financeira recursos que esta deixava de receber em razão da concessão de crédito subsidiado. Do ponto de vista das regras da contabilidade oficial, pagar as equalizações – em dia ou não – representaria incorrer em despesa primária, fosse pela redução do saldo da conta única, fosse pelo aumento do estoque de obrigações, respectivamente. Optou-se por não realizar os pagamentos e por não registrar as dívidas na contabilidade oficial. Além disso, o extinto Ministério da Fazenda passou a editar portarias que, ao arrepio da lei, estabeleciam o lapso de 24 meses para pagamento das equalizações e os juros que passariam a ser devidos em razão desse prazo. Funcionavam como verdadeiros contratos unilaterais, por meio dos quais a União obrigava a instituição financeira a financiá-la, em afronta à vedação trazida pelo art. 36 da LRF. Não fosse o bastante, ao final dos dois anos, a dívida (principal e juros) não era paga e nem registrada pelas estatísticas fiscais.

 No que tange ao Programa Minha Casa Minha Vida, atrasar o pagamento de subvenções representaria postergar o registro da despesa primária, mas afetaria a execução da política pública. Então, por lei, o FGTS foi autorizado a honrar os pagamentos da União junto a cada mutuário. Uma das pedaladas "fora da lei", no caso, consistia em não registrar, nas estatísticas, o passivo oriundo da concessão do crédito, omitindo, assim, o cômputo da despesa. Outra pedalada desse tipo residia em omitir no orçamento público que as subvenções (despesas correntes) estavam sendo financiadas mediante endividamento, prática que pode caracterizar inobservância do art. 32, § 1º, V, da LRF. Além disso, embora as subvenções fossem totalmente pagas (com grana do FGTS), apenas as etapas do empenho e da liquidação eram orçamentariamente registradas, inscrevendo-se os montantes respectivos em restos a pagar, para que pudessem ser utilizados como "barriga de aluguel" para o pagamento, sem autorização orçamentária, da dívida junto ao Fundo. Vale ressaltar que executar despesa sem autorização e realizar operação de crédito com inobservância de condição estabelecida em lei são atos passíveis de enquadramento nos crimes tipificados pelos arts. 359-A e 359-D do CP.

 Caro leitor, por evidente, qualquer tipo de pedalada é prejudicial à noção de responsabilidade fiscal. Mas cuidado! Apenas as "fora da lei", como diria o jornalista João Villaverde, podem ser enquadradas como "perigosas pedaladas".

  

FIM

Antonio Carlos Costa d’Ávila Carvalho Júnior[1]



[1] Auditor que coordenou a auditoria que identificou e apresentou à sociedade as pedaladas fiscais que levaram ao impeachment da ex-presidente da República. É Consultor de Orçamento e Fiscalização Financeira na Câmara dos Deputados (desde 2016). Foi Auditor de Controle Externo do Tribunal de Contas da União (2004 a 2016), Analista da Divisão de Finanças Públicas do Departamento Econômico do Banco Central do Brasil (1998 a 2004), sócio da Performance Assessoria e Administração Financeira Ltda (1996 a 1998) e Analista de Sistemas do Banco do Brasil (1983 a 1996); todos os cargos por meio de concurso público. É professor de Orçamento Público, Gestão Fiscal, Administração Financeira e Orçamentária, Lei de Responsabilidade Fiscal, Metodologia "Abaixo da Linha" para Apuração do Resultado Fiscal Primário e Nominal. Coautor do livro Entendendo Resultados Fiscais: Teoria e Prática de Resultados Nominal e Primário (Editora Gestão Pública). Monografia premiada pelo Prêmio do Tesouro Nacional (2011): Coordenação entre as Políticas Fiscal, Monetária e Cambial - a Sistemática de Repasses de Resultados entre o Bacen e o Tesouro Nacional. Especialista em Orçamento Público pelo Instituto Serzedelo Corrêa (ISC) e Centro de Formação da Câmara dos Deputados (CEFOR).

"COMENTÁRIOS A ACÓRDÃOS DO TCU" - ACÓRDÃO 10.861/2020-2C - União versus BASA - R$ 1 bilhão

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AUTOR: Antonio Carlos Costa d'Ávila Carvalho Júnior - Professor de Orçamento Público e Gestão Fiscal - professordavila@hotmail.com

OBSERVAÇÃO: permitida a reprodução, desde que citadas a fonte e o autor.

Este é o primeiro de uma série de textos que irei apresentar sobre Acórdãos do TCU. Por intermédio deles, farei comentários sobre aspectos técnicos das decisões mais relevantes do TCU relacionadas à dívida pública, resultado fiscal, orçamento, contabilidade pública, relacionamento Tesouro x Banco Central do Brasil, entre outros.
Espero que sejam úteis.
Este primeiro texto trata de processo cuja decisão, ao meu sentir, foi completamente equivocada, e que abre precedente perigoso quanto à competência do TCU para fiscalizar atos praticados pelo Banco Central do Brasil.
Boa leitura!

NOTA TÉCNICA - PROJETO DA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL - FERNANDO BARROS VEIGA E SILVA

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AUTOR: Antonio Carlos Costa d'Ávila Carvalho Júnior - Professor de Orçamento Público e Gestão Fiscal - professordavila@hotmail.com
OBSERVAÇÃO: permitida a reprodução, desde que citadas a fonte e o autor.

Excelente Nota Técnica sobre o Projeto da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Tal NT foi redigida em fevereiro/2000 por Fernando Barros Veiga e Silva, à época, Consultor de Orçamentos do Senado Federal.

(Baixar AQUI)

Bons estudos!!!

ORÇAMENTO PÚBLICO - EXERCÍCIOS COMENTADOS - PARTE 02



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AUTOR: Antonio Carlos Costa d'Ávila Carvalho Júnior - Professor de Orçamento Público e Gestão Fiscal - professordavila@hotmail.com
OBSERVAÇÃO: permitida a reprodução, desde que citadas a fonte e o autor.

EXERCÍCIOS COMENTADOS - PARTE 02 - Créditos Adicionais

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Bons estudos!!!



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